O triunfo de Oliveira com o seu Buñuel em Veneza

Reacção entusiástica em Veneza ao último Oliveira, Belle Toujours, uma homenagem ao Belle de Jour, de Buñuel. 38 anos depois, dois sadomasoquistas sentam-se à mesa. Perversidade ou melancolia?

Os perversos sentam-se à mesa em Paris, iluminados à luz de vela, 38 anos depois da sua juventude que ficou cristalizada num filme de Luís Buñuel, Belle de Jour/ Bela de Dia, de 1967. Ela, que ficou viúva, está à beira de ir para o convento, diz que a velhice lhe expulsou a sexualidade do corpo; já não precisa dela. Ele já tem o seu convento pessoal, o alcoolismo.
(Recorde-se, foi há 38 anos: quando ainda o sexo servia de catarse, ela, que se chamava Séverine, só conseguia amar o marido se o enganasse num bordel, e se regressasse para ele com remorsos. E ele, o amigo pessoal do marido dela, foi o instrumento do masoquismo dela.)
Ela e ele eram, em Belle de Jour, Catherine Deneuve e Michel Piccoli. Ficaram mistérios por revelar. Agora são Bulle Ogier e Michel Piccoli em Belle Toujours, de Manoel de Oliveira, uma pequena jóia de 70 minutos exibida fora de concurso no Festival de Veneza (entusiasmo, aplausos, um triunfo na primeira sessão para a imprensa).
Uma homenagem ao argumentista Jean-Paul Carrière e ao realizador Buñuel, Belle Toujours, que parte do pressuposto de um reencontro entre as personagens, em Paris, comete a façanha de não ser menos perverso do que o filme do espanhol com argumento do francês, porque não lhe tenta explicar o mistério (anda por lá a caixinha com o barulho do insecto que tanto fazia titilar a Severine de Buñuel e tanto fazia titilar o espectador do filme, que nunca soube - e nem agora saberá - qual era o seu conteúdo...). Com isso Belle Toujours ganha a sua parte de mistério, mas, o que é particular, acrescenta-lhe melancolia.
O que Oliveira faz é uma obra sobre a(s) impossibilidade(s), uma variação musical sobre o inatingível, sobre a passagem do tempo. Dois velhos perversos à mesa, respiração pesada (ele), postura titubeante (ela), não reactivam o jogo das suas manias sadomasoquistas (há um jantar que pertence já a uma antologia "oliveiriana": barulho dos talheres, comida na boca, silêncios de desconforto). Intervém às tantas, depois desse jantar, um galo, mas o filme deve menos ao surrealismo buñueliano do que à rodopiante gravidade daqueles (Max Ophuls, por exemplo; mas, e porque não, também Lubistch...) que, com aparente ligeireza, uma ligeireza triste, tocam o abissal mundo das paixões humanas. Como quem dança e dança e dança ofegante pela noite dentro atrás de uma quimera. Um divertimento com inferno dentro, portanto.
Os deuses falam, mas é dos homens que também fala Quei Loro Incontri, de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet (em competição). Porque é sobre a Lei, sobre o medo de Deus e a morte de Deus o texto dos últimos cinco Dialoghi con Leucò, de Cesare Pavese. Encenado o ano passado em teatro pela dupla, é agora um texto (e silêncio, e natureza) filmado. Que, também porque esteve com estes intérpretes durante um ano mas também porque é assim na obra dos autores de Dalla Nube alla Resistenza, se faz invocação e corpo autónomo, matéria ardente que jorra durante uma hora.
As coisas queimam em lume muito mais brando em Nue Proprieté, do belga Joachim Lafosse (concurso). Pequeno filme sobre a desintegração familiar - a partir da decisão de uma mãe, divorciada, que vive com dois filhos gémeos, de vender a casa familiar -, coloca-se decididamente num espaço médio. Não é por isso que não é isento de atractivos. Podemos invocar os nomes de Jean-Pierre e Luc Dardenne (da sua obra, de A Promessa e de O Filho, vem aliás um dos intérpretes, Jérémie Rénier, que faz um dos gémeos) ou mesmo de Maurice Pialat. Embora sem as fracturas que as obras desses cineastas rasgam e arriscam. E consegue integrar na sua dimensão, sem se deixar consumir por isso, a intuição dominadora de uma actriz como Isabelle Huppert.

Sugerir correcção