Carta aberta a Pepetela

ACaro Pepetela,

declaração que V. publicou o mês passado a justificar o seu papel na tragédia do 27 de Maio de 1977 é um documento tão cheio de omissões em relação aos factos que refere que eu não posso deixar de tomar uma posição crítica. Ao protestar a sua inocência em relação aos horrores e à exterminação generalizada de militantes do MPLA nesse período, V. diz ter-se limitado a desempenhar funções dentro de uma Comissão nomeada pelo Bureau Político, cuja tarefa era "[...] seleccionar entre os depoimentos dos detidos [...] os que seriam mais elucidativos para serem transmitidos pelos orgãos de informação". E deixa subentendido que qualquer outra responsabilidade que se lhe queira assacar, de participação na repressão ou em algum tribunal, é uma acusação desprovida de verosimilhança, fruto simplesmente de uma grande confusão com outras pessoas e entidades que funcionaram também no Ministério da Defesa em Luanda [onde se centralizaram as questões respeitantes ao 27 de Maio]; visto o seu trabalho jamais se ter confundido com o que se passava e decidia noutros espaços. E termina por desejar que as instâncias superiores do MPLA venham em sua defesa e o ilibem de qualquer suspeita.
Repare bem: eu não estou aqui para o incriminar ou julgar, não é essa a minha atribuição. O que somente me move é derramar luz sobre os factos do passado de maneira a poder descrever e explicar a história com mais rigor. Se alguém tiver que julgar alguém, essa faculdade é pertença exclusiva da sociedade e das suas instituições no pleno gozo da soberania. Se devo perdoá-lo pelo esquecimento, na esteira do que pregava o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) nos seus Fragmentos de um Evangelho Apócrifo, sinceramente respondo que tal gesto me ultrapassa. Não por incapacidade de o fazer a título individual, mas por deferência para com a sombra nua de milhares de desaparecidos ou por compromisso com os seus fragmentos de sangue que reclamam por justiça. Como a justiça ainda não chegou, não faz sentido falar em perdão. Por esta ordem de razões, só me posso permitir uma atitude: confrontá-lo com algumas dúvidas que a sua declaração me suscitou na esperança de que V. venha a esclarecer qual foi concretamente o seu desempenho institucional naqueles tempos negros de barbárie.
Mas antes de prosseguir, deixe-me fazer-lhe uma advertência. Não se iluda, ilustre concidadão, pensando que o MPLA por solidariedade ou por consideração à sua leal e desinteressada prestação de serviços à revolução o venha a coonestar dos estigmas de que se queixa. Lembre-se das personagens de George Orwell [autor de 1984] que se humilharam ao Grande Irmão [o Partido] e lhe entregaram as suas existências, persuadidas de que ele representava a chave dos desígnios superiores da História e nunca as abandonaria. Ainda por analogia, veja o que sucedeu com o desmoronamento da União Soviética e com as pessoas que durante uma vida inteira se dedicaram ao Partido. Postas de parte e deixadas entregues a si próprias, não souberam o que fazer com as suas crenças, enquanto outras - por crimes que o Partido as induziu a cometer - carregam solitárias o peso de terríveis fantasmas.
Reconheço que os seus livros são admirados pela beleza e pela "transcendência espiritual" das estórias que conta. Porém, preferiria vê-lo doutra forma. Não como um escriba sentado e submisso que sempre cortejou o príncipe e a sua corte; que sempre se acomodou aos servilismos culturais do MPLA e aos fetichismos do seu regime político; ou que sempre se calou diante das monstruosidades criminais e totalitárias do Estado, e sempre fingiu ignorar os abusos contra o pensamento e a liberdade de expressão. Ao interpelá-lo agora com esta carta, conto um dia vê-lo como um escriba de pé que se libertou da passividade de outrora, que colocou um ponto final no seu silêncio e, finalmente, resgatou a "verticalidade do verbo", de que fala o poeta uruguaio Saúl Ibargoyen.
Não me interprete mal. Não estou a querer cingir na sua lapela o botão de dissidente, nem a sugerir que o deva ser, o que estou a propor é que tenha o "hábito altamente incómodo" de falar a verdade - como declarava o novelista e intelectual russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937) -, ao invés de se contentar em ser aplaudido como um tartufo. É isso que muita gente espera de si depois de ler o seu documento.
Com efeito, esperam-se mais explicações, especialmente sobre a tal Comissão em que V. trabalhou. Para as pessoas menos avisadas [ou desinformadas] fica a impressão que os membros dessa Comissão, do princípio ao fim, se pautaram por um espírito de equanimidade. No entanto, não foi essa a percepção nem a experiência que colhi quando V. e outros [entre os quais ministros e altos responsáveis do MPLA] me "interrogaram" na tarde do dia 4 de Junho de 1977. O que ali se passou [recorda-se?] foi tudo menos uma investigação ditada pelo rigor e pela observância de normas jurídicas, e menos ainda pelo respeito a regras de humanidade, e sim uma longa e delirante sessão de tortura psicológica, temperada por gritos de achincalhamento, por ameaças físicas e todo o tipo de bestialidades. No tempo em que durou aquele inferno inquisitorial tive por vezes a sensação de estar na antecâmara da morte. Aliás, o que essa Comissão fez comigo, fê-lo também com muitas outras vítimas, totalmente desprotegidas. Pergunto-lhe pois, caro conterrâneo, o que representa para si um acto destes? É ou não um acto de repressão, de selvajaria institucional, quando V. alega não ter participado de tais práticas? É ou não algo de comparável aos famigerados processos de Moscovo e Pequim onde, afinal, prevaleceu o sádico prazer de punir e destruir moral e fisicamente pessoas cujo delito era pensarem diferente?
Outra explicação que se lhe pede tem a ver com a sua postura moral ante a avalanche de actos hediondos que decapitaram uma parcela importante da juventude angolana, a melhor talvez do MPLA. Até hoje V. não emitiu uma palavra a respeito, o que é estranho. O facto de ter trabalhado no Ministério da Defesa deu-lhe ocasião para ver de perto a onda de canibalização e histeria sanguinária em que o país soçobrou. Se não foi um sujeito ausente, pelo menos esteve bem dentro desse clima de terror e força. Que adianta afirmar não ter sujado as mãos de sangue e não participar de sentenças de morte? Acaso não lhe ocorre que, tendo estado no lugar em que esteve [e indo até ao fim], acabou por se tornar cúmplice de toda essa irracionalidade?
A sua posição moral, na verdade, é bastante controversa, sem esquecer outras situações não menos delicadas que, julgo, lhe ficará bem elucidar. Como, por exemplo, o seu papel, na campanha de intoxicação ideológica, muito antes do 27 de Maio, com artigos na imprensa oficial, nos quais - por recurso ao símbolo da serpente - se aviltaram figuras políticas de elevado escalão na hierarquia do Estado e do Partido, além de terem servido para desumanizar o processo político e empurrar uma boa parte dos militantes do MPLA para o ostracismo. Quem lhe encomendou este papel de protector especial das instituições? Historiador angolano

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