Sangue e ouro viagem ao fim da noite

O cinema iraniano tem conseguido, nas últimas décadas, com nomes como Makhmalbaff ou Abbas Kiarostami, uma visibilidade que se prende não apenas com uma atenção ao real, por vezes próxima do documentário, mas também com a habilidade para iludir a censura do regime fundamentalista islâmico, sugerindo mais do que mostrando as suas contradições e perplexidades.

Em tempo de relativa abertura, "Sangue e Ouro", de Jafar Panahi ("O Círculo"), com argumento de Kiarostami, coloca questões de profundas implicações, até porque mostra com clareza os mecanismos da repressão, socorrendo-se de um esquema narrativo que lembra o "film noir": dois amigos assaltam uma joalharia destinada aos ricos, menos para roubar do que para se vingarem da descriminação de terem sido humilhados, como pertencentes às classes que não devem frequentar estabelecimentos de luxo, com jóias italianas e uma clientela refinada. No entanto, começamos pelo presente, pelo que toda a trama nos é dada por um longo "flashback" (praticamente todo o filme), em que traçamos o percurso dos dois amigos, sem que a sinalização de descontinuidade temporal seja feita de forma clara, Ao reconstituirmos as razões para a revolta, revisitamos, ao mesmo tempo, o espaço do Irão contemporâneo, saído da revolução islâmica, em que as diferenças de classe continuam a dominar e em que a presença constante do aparato repressivo dá a noção de um mal estar inominável. Duas sequências, em especial, constituem o cerne desta intervenção no real, construído nos confins da noite, como um sonho ou um pesadelo: primeiro a cena da distribuição das pizzas, servindo como pretexto para encenar o cerco da polícia, vigilante dos bons costumes, a uma festa nocturna, sinal da decadência ocidental. Sem grande subtileza, retrata-se a acefalia de um sistema que controla o indivíduo e a resistência de uma classe às separações de sexo ou aos ditames da moda. O protagonista assiste à prisão sucessiva dos convivas, que saem da festa, e distribui pedaços de pizza, tudo como de um espectáculo se tratasse.

Em tom de tragicomédia, faz-se a travessia da noite, centro da ficção e lugar de definição da personagem: gordo, pobre, inadaptado, o herói percorre a Odisseia da sua última hipótese de vida, de episódio em episódio, à espera de que a manhã lhe permita redimir o seu complexo de classe, adquirindo pela força as jóias que lhe foram negadas. Por isso se torna fundamental uma segunda sequência, de novo na parte alta de Teerão, do lado dos ricos e privilegiados, aquela em que o herói aviltado entra no luxuoso apartamento, habitado pelo ocioso filho de exilados nos EUA. Não há apenas um contraste de vida, na proliferação de casas-de-banho ou na ostentação da piscina e dos materiais nobres; há ainda uma espécie de estranho pacto entre dois párias: o que nada tem e o que tudo tem e nada entende, desenraizado de um mundo, a que já não pertence, a que nunca verdadeiramente pertenceu. Não se trata apenas de um espectáculo da hipocrisia de uma revolução falhada e contraditória, mas da explosão necessária, para que o protagonista se transforme, de manhã, num pequeno marginal.

No final, como no início, filmado de complementar ponto de vista, assistimos a uma espécie de imolação do herói tragicómico, preso numa "gaiola" de luxo, concebida para proteger os ricos e poderosos da contaminação social. Depois da viagem iniciática pela noite, está preparado para o sacrifício final, como num "film noir", mas muito longe do espaço cultural que o criou e da sua lógica interna. Como se a noite fosse protectora e a luz do dia letal.

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