Marivaux de subúrbio

E se se cruzasse o universo realista de Mathieu Kassowitz, obcecado com os conflitos e os ódios suburbanos, com as fantasias teatrais de Jacques Rivette? Talvez esta mistura "impossível" estivesse na cabeça de Abdel Kechiche, quando concebeu "A Esquiva", um "jogo do amor e do acaso" situado numa comunidade islâmica dos arredores de Paris. No início, tudo parece ir explodir nas rivalidades entre adolescentes, mas depressa nos apercebemos de que o tom adoptado é o da comédia de costumes, que se socorre do teatro dentro do teatro para dar conta dos pequenos amores e traições, dos sobressaltos de um quotidiano marginal, mas controlado, dos anseios de um grupo que transporta para um mundo conceptual, que não entende bem, os seus problemas quotidianos.

Até aqui tudo bem. Os jovens estudam Marivaux. Uma professora "progressista" fá-los representar "O Jogo do Amor e do Acaso", para lhes falar das diferenças sociais espelhadas na texto barroco. Os ensaios com traje fornecem aos jovens uma saudável evasão. Os seus jogos amorosos parecem-se com os de quaisquer outros jovens da sua idade.

Os problemas surgem, quando já entendemos o programa do filme e somos confrontados com a repetição, com excesso de decibéis, diga-se de passagem, das mesmas fórmulas e dos mesmos pressupostos. Claro que se percebe a intenção de figurar o amor intemporal, fazendo com que Krimo se apaixona pela sua colega Lydia, de modo a querer interpretar Arlequim na peça escolar em ensaios, ao lado da sua Lisette. Claro que é curioso assistir ao "massacre" do texto, quer pelos que lhe dão intenção de amadores, quer pelo que apenas se serve da peça para conquistar a sua apaixonada. Mas até onde pode ir esta variação sobre o "film de banlieue", contra os clichés rácicos e contra os preconceitos culturais?

Poderá, contudo, dizer-se que esta benigna visão sobre a juventude da periferia de Paris se refugia demasiado numa bolha de cultura e de "amor", como se os problemas não existissem, como se o uso, ou não, do véu islâmico não tivesse dividido, neste mundo de fingimento e de bons sentimentos. Existe um momento de violência policial, um roubo de telemóvel (embora para servir o encontro amoroso), mas tudo se dilui num inocente e despreocupado "marivaudage", gritado aos quatro ventos.

Não estamos a defender que todos os filmes sobre a "banlieue" tenham que ser brutais, apenas alertamos para o facto de que este filminho divertido, que, aliás, lança um olhar interessante sobre as mutações de uma língua e de uma cultura, em comunidades imigrantes, se fecha no confronto cultural que propõe com os clássicos, como se o tempo não existisse, ou, melhor, como se a cultura não espelhasse o tempo que a criou. Não se trata propriamente de um defeito, mas de uma opção.

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