A Floresta interdita

É um segredo - porque hoje as fábulas só podem existir fora do mundo. Uma pequena comunidade refugiou-se numa clareira de inocência, algures numa América rural. É um segredo e o seu guardião é M. Night Shyamalan, que também reservou para si um lugar à parte, fora de Hollywood, numa Pensilvânia mais rural, que tem servido de cenário aos seus filmes - um isolamento a que não é alheio o puritanismo em que se move o seu cinema (recentemente, o "Los Angeles Times" traçava-o como alguém em permanente auto-vigilância, alguém que parece estar sempre a lembrar-se de que se deve manter "puro").

É por aqui que se sabe que se está no território do realizador: pelo puritanismo, que se traduz em valores tradicionais, como a família ou a fé e, nas suas duas últimas obras, o regresso à terra. Façam o favor de entrar em "A Vila", o quarto (se só contarmos a partir de "O Sexto Sentido", já que os dois primeiros filmes são fracassos assumidos pelo próprio) e mais belo filme de M. Night Shyamalan.

Aqui vive uma América arcaica, como uma pintura de época que, subitamente, ganhasse vida. É assim que uma comunidade inventa o seu idílio, à margem do mundo e das cidades malditas. Mas há sons estranhos, ameaçadores que irrompem da floresta, mesmo em frente...

A floresta é a fronteira, como numa fábula. Ninguém deve entrar na floresta porque é aí que estão "aqueles de que não se fala". Não os vemos, mas Shyamalan carrega cada plano de significado, através de uma atmosfera rarefeita e de uma intensificação das matérias, das cores e das formas, apelando a um medo primitivo. Os seus filmes começam, sobretudo, por ser uma abstracção - aquilo que levou um crítico do "Village Voice" a classificar "A Vila" como um "non-horror horror film". O objecto do medo está quase sempre fora de campo, sejam os extraterrestres de "Sinais" ou os seres da floresta em "A Vila" - e não é por acaso que a heroína, aqui, é cega.

às cegas. Não os vemos, mas os animais que aparecem esfolados pela manhã ou as criaturas de capa escarlate que rondam as casas à noite validam a ameaça - e o medo.

É aí que as famílias correm para dentro de casa, é aí que um rapaz, Lucius Hunt (fabuloso Joaquin Phoenix), começa a desafiar o medo. Olha-se para Phoenix e vê-se aquela paralisia dos protagonistas dos filmes de Shyamalan: é um corpo rude preso numa mudez perturbante (o efeito é tão comovente quanto cómico: como em "Sinais", Phoenix é uma figura próxima do burlesco).

Lucius acredita que as criaturas poupam os inocentes - o louco da comunidade, Noah (Adrien Brody), que entra e sai da floresta todo o tempo, confirma-o - e propõe-se prová-lo, atravessando a floresta interdita.

Um outro rosto de inocência tomará o seu lugar, num acto de amor: Shyamalan diz que a maior fonte de inspiração para "A Vila" foi "O Monte dos Vendavais", de Emily Brontë ("encontrei um negrume romântico, uma força emocional e inconsciente com os quais tenho afinidades").

Contra todas as evidências em contrário, um par vai emergir desta comunidade austera: o quase mudo Lucius e a cega Ivy Walker (Bryce Dallas Howard, filha do realizador Ron Howard). Alguém falou de Chaplin a propósito desta história de amor - fica, portanto, o aviso quanto à improbabilidade de um par assim no mundo contemporâneo - que Shyamalan filma de forma fulgurante, envolvendo-a na languidez dos seus planos-sequência (dois dos mais belos planos do filme pertencem-lhes: duas mãos que se agarram em "ralenti", a confissão de amor no alpendre).

É Ivy quem vai atravessar a floresta, qual Capuchinho (amarelo), para salvar Lucius - que ficou para trás, entre a vida e a morte - como uma figura sacrificial. Sim, como Nicole Kidman em "Dogville" (será apenas coincidência que Bryce Dallas Howard retoma o papel de Grace no próximo filme da trilogia de Lars von Trier, "Manderlay"?), com o qual "A Vila" parece ter algo mais a ver: como aquele, também a comunidade de "A Vila" é um microcosmos de uma América tradicional, mítica, e, como aquele, também é uma encenação.

É com o périplo de Ivy que "A Vila" começa a libertar-se das suas referências - desses sinais típicos de série B, de "Twilight Zone" e filme fantástico - e a desenhar-se a parábola política. M. Night Shyamalan, ele próprio, irá surgir num "cameo", lendo um jornal onde se distingue uma notícia sobre a morte de dois soldados em combate: a América de "A Vila" não pertence (só) ao passado, é a América pós-11 de Setembro, fundada sobre o medo. Dito de outro modo: "A Vila" conjuga uma América primitiva com a América contemporânea, que é a que espera Ivy do outro lado do muro (e não será por acaso que a figura tutelar da comunidade, Eduard Walker, interpretado por um sonâmbulo William Hurt, é um ex-professor de História).

Para quem tem acusado "A Vila" de reaccionarismo (por tudo aquilo que preside à comunidade isolacionista: regresso à terra, recusa de progresso, um modo de vida espartano), há que notar a ambivalência de Shyamalan: é essa comunidade ancestral, fundada sobre a mentira que mais se assemelha à América de Bush, e é o suposto lobo desta história de Capuchinho Amarelo, a América contemporânea, quem protege e ajuda Ivy.

E é com Ivy, enfim, que o filme avança para a epifania: esses volte-faces que vêm inverter a ordem da ficção e que se tornaram numa espécie de marca do cinema de Shyamalan são menos um golpe de teatro do que uma forma de revelação (fiquemos por aqui: os filmes do realizador são para entrar às cegas).

É sabido que a família de Shyamalan no cinema são Spielberg e George Lucas ("Quando eu tinha entre sete e doze anos foi quando 'A Guerra das Estrelas', 'Encontros Imediatos do Terceiro Grau', 'Os Salteadores da Arca Perdida' e 'E.T.' apareceram, e se havia alguma coisa em mim no sentido de querer fazer filmes, isso ia-se manifestar porque esses são os melhores filmes de sempre"). Mas arrisque-se o delírio: "A Vila" é também o mais dreyeriano dos filmes de Shyamalan. Abre com uma morte acaba com uma (quase) ressurreição. Fabuloso filme.

Sugerir correcção
Comentar