Torne-se perito

Uma boda para relançar a Coroa

O casamento de Felipe de Borbón e Letizia Ortiz Rocasolano não é apenas a celebração, com pompa, de uma união. Numa monarquia, mesmo parlamentar, a boda do primeiro na linha da sucessão tem o objectivo de assegurar a continuidade dinástica. Neste caso, em Espanha, há aspectos peculiares e a vontade de relançar a Coroa."Os espanhóis são monárquicos funcionais: se a instituição funciona, tudo bem. O próprio Rei é um monárquico utilitário, ao ponto de afirmar que a Coroa se ganha dia a dia", observa ao PÚBLICO Charles Powell, investigador do Real Instituto Elcano e autor de "O piloto do cambio", a biografia política de Juan Carlos I. "O pai do monarca não reinou, pelo que essa particularidade conferiu um sentido de vulnerabilidade e fragilidade à instituição e também a possibilidade de começar do zero", admite. "O Rei tem um importante património de simpatia; aliás, em Espanha há 'juancarlistas' e não monárquicos, o que não significa necessariamente a consolidação da monarquia", afirma o jornalista José Garcia Abad, autor de "A solidão do Rei", um livro no qual são criticados alguns comportamentos do monarca. "A monarquia continuará porque o seu fim provocaria instabilidade no país", prossegue Garcia Abad.Monárquicos à falta de melhor? "A Espanha é um país muito pragmático em questões institucionais. O mais brilhante que Juan Carlos fez foi uma monarquia à imagem do país, não grande, como na Inglaterra, uma monarquia vitoriana, imperial, num país pós-Império", considera o historiador. Esta preocupação tem várias traduções: "É por isso que o Rei não vive no Palácio do Oriente, cuja memória está ligada à fuga de Alfonso XIII, um edifício de proporções enormes que transmite uma grandeza que nada tem a ver com a monarquia que ele deseja, uma monarquia próxima do povo, sem corte", exemplifica. Abad acentua que essa proximidade deriva da "etapa épica" do reinado: "O monarca dirige e salva a transição democrática aquando da tentativa de golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981 e, a partir de então, há uma espécie de casamento de conveniência entre a democracia e a monarquia".Mas houve, recentemente, tensões entre o Governo de José Maria Aznar e a Casa Real, pelo pouco espaço dado à figura do monarca nas questões internacionais. Com os conservadores no poder as relações não foram tão fluidas como com os socialistas, que se esforçavam por demonstrar serem compatíveis com a monarquia. "O casamento é sempre um bom momento de popularidade"O novo chefe do Governo, o socialista José Luís Rodriguez Zapatero, já assegurou "que o Rei é o nosso melhor embaixador". Aliás, segundo o PÚBLICO apurou, o anúncio da retirada das tropas espanholas do Iraque, em 18 de Abril, foi antecedido por uma conversa telefónica de Juan Carlos I com o Presidente norte-americano George W. Bush.O casamento do herdeiro do trono suscita a questão da sucessão. "É decisivo que o Príncipe não pense que pelo simples facto de o pai ter reinado isso lhe dá o direito a esperar a mesma receptividade da sociedade; tem a legitimidade constitucional mas deve trabalhar o carisma", aponta Charles Powell. "É desejável que o Rei não abdique, o que pode criar uma situação 'à inglesa', um herdeiro de meia-idade, sem funções definidas", prossegue. Até agora, ao Príncipe foi atribuído o papel de representação sobretudo na América Latina. "A existência de duas cabeças visíveis pode debilitar o Rei sem reforçar o filho; se assim fosse no futuro, creio que o Rei estaria disposto a abdicar", antevê Powell.Se é bem verdade que Felipe é um homem preparado, com carreira universitária, José Garcia Abad é prudente: "Até agora deu poucas pistas, mantém um círculo de amigos do colégio "Los Rosales", "filhos de papá", não se lhe conhecem amizades com gente profissional". Pelo que "o desafio que o herdeiro tem pela frente é ganhar a simpatia e o casamento é sempre um bom momento de popularidade". Nesta tarefa pode ter na mulher, a partir de hoje Princesa de Astúrias com direito a tratamento de "Sua Alteza Real", uma aliada. "Espero que Letizia o integre noutro mundo, de profissionais, mais ligados à realidade social e à pluralidade, mas temo que ela já esteja a ser 'absorvida' pela Zarzuela". O historiador admite que a antiga jornalista, "profissão à qual já não pode voltar", abra janelas no Palácio. "Pode dar ao Príncipe algo que ele não tem, o conhecimento externo à Coroa, a percepção comum sobre a monarquia. Ela tem a experiência dos dois lados do espelho. É, como dizem os jornalistas, ter 'o inimigo' em casa", sublinha Charles Powell.

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