Peter Handke por Rita Só na Casa Conveniente

Há uns tempos, a actriz Rita Só levava sempre na mala as peças de Peter Handke, lia-as como se fossem um diário e não conseguia imaginar a possibilidade de as interpretar.A vontade de criar um projecto centrado nas peças compiladas em "Peter Handke's Plays" foi crescendo, Rita Só desafiou Mónica Calle e Carlos Pimenta a encená-la e nasceu "Luz/Interior", que hoje estreia na Casa Conveniente, Lisboa.São dois textos do autor austríaco ("Introspecção" e "Insulto ao Público"), dois espectáculos para uma só actriz, em cena em dias alternados.A ordem de visionamento não está definida: o espectador escolhe se quer primeiro entrar na sala térrea e ver um espectáculo sem truques de iluminação - "Insulto ao Público" (encenação de Carlos Pimenta) - ou descer às catacumbas e partilhar na penumbra, com três espectadores, "Introspecção" (encenação de Mónica Calle). São dois espectáculos diferentes mas a verdade é que acabam por se contaminar e complementar formando uma espécie de yin e yang.No ensaio para a imprensa, foi mostrado primeiro "Insulto ao Público" - o título é para levar à letra porque o público é mesmo insultado. Peter Handke joga à perversidade, faz rasteiras aos espectadores, manipula-os com crueza e cinismo, joga às contradições e constrói uma charada.Na sala, não há escudo que proteja o público: há um espelho à sua frente que reflecte toda a plateia e revela os mais pequenos gestos, provoca choques cara-a-cara, tudo está às claras. Pode-se sempre olhar para o lado ou assumir o narcisismo, mas isso é ver o espectáculo pela metade. "Morrerão de tédio se não quiserem ser interpelados", diz Rita Só no espectáculo.Nada para encenar, nada para representar, nada de novo: é este o ponto de partida da peça inaugural de Handke (1966) que podia ser o epitáfio de uma vida exausta de teatro. Handke escreveu um "tratado" para esvaziar o palco, enchendo-o de palavras que obsessivamente se repetem.Descida à cave do antigo bar Lusitânia agora transformado na nova Casa Conveniente, também no Cais do Sodré. O teatro comprime-se e o clima oprime. Também aqui qualquer gesto pode perturbar mas desta vez a "lupa" não é o espelho, é quem está sentado na cadeira do lado. Há uma plateia vazia à frente dos quatro espectadores, uma plateia que afinal serve de palco a Rita Só (outro "espelho" do público, desta vez imaginário).Rita Só usa o "eu" para um tom confessional porque esta peça, traduzida para "Introspecção" (do inglês "Self-Accusation"), é uma espécie de "Eu confesso", "Eu pequei", com uma mensagem: quem atira a primeira pedra? Novo jogo de palavras - verbos, substantivos, nomes, prenomes -, novo exercício à volta de formas gramaticais e escalas de valores humanos. Novamente uma obsessão de Handke: o sujeito, o sujeito universal."Luz/Interior" junta Carlos Pimenta e Mónica Calle pela primeira vez num projecto. E é também a primeira vez que a encenadora e directora da Casa Conveniente agarra numa proposta de outro criador. "Normalmente é ao contrário", diz Calle, "sou eu que proponho coisas às pessoas; o projecto faz parte do caminho da Rita Só, são as questões dela e eu tive que me descentrar para ajudá-la a ir à procura."Rita Só não queria interpretar dois espectáculos redundantes, daí o convite a dois encenadores com linguagens diferentes (a última peça que Carlos Pimenta dirigiu foi "Ricardo III", de Shakespeare, com Rogério Samora; Mónica Calle acabou de dirigir "Esquina de Uma Rua", uma espécie de versão de "À Espera de Godot", de Beckett). Só há uma semana é que os dois criadores viram o espectáculo um do outro.A actriz pertenceu ao extinto Olho, acompanha o trabalho de Calle há algum tempo e sempre quis trabalhar com a encenadora; Pimenta surgiu como sugestão do co-produtor João Garcia Miguel.Calle centrou-se no trabalho sobre a palavra, quis ir ao encontro da proposta de Rita Só mas está lá a sua assinatura, bem vincada no final - a partilha do espectáculo com o público (não contamos como, para não estragar a surpresa).Pimenta teve que enfrentar o desafio da "não encenação": "Pôr aqui um som, tentar encenar este texto é um risco porque estamos constantemente a ser desafiados com a questão dos códigos". Para o encenador, o "mais aliciante" foi fazer este espectáculo em pleno coração do Cais do Sodré: "As pessoas vão deslocar-se a um espaço que não é um teatro para ver uma peça que não é bem uma peça".LISBOA Casa Conveniente. R. Nova do Carvalho, 9. Tel.:968086808. Até 15/05. "Insulto ao Público", de 2ª a sáb., em dias alternados, às 21h30; "Introspecção", de 2ª a sáb., às 21h e 22h: Bilhetes a 7,5 e 10 euros

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