América proibida

"Run, Rudolph, Run." Durante mais de cinco anos, muitos habitantes das comunidades rurais na zona de Murphy, na Carolina do Norte, ostentaram autocolantes deste tipo em favor do carpinteiro de 36 anos, Eric Rudolph. No passado mês de Junho, contudo, a "correria" de um dos fugitivos mais procurados pelo FBI terminou. Eric Rudolph encontra-se agora preso e acusado de quatro atentados bombistas em 1996, 1997 e 1998 nos estados do Alabama e da Geórgia, que provocaram duas mortes e ferimentos em mais de 150 pessoas. Os alvos dos ataques foram os jogos Olímpicos de Atlanta, clínicas de saúde onde se realizavam abortos e uma discoteca lésbica. Uma vez capturado Rudolph, os seus apoiantes mudaram os "slogans". A dona de um restaurante decidiu pôr em frente ao seu estabelecimento um cartaz com a inscrição, "Rezem por Eric Rudolph". Entre os haveres pessoais de Eric Rudolph confiscados pelo FBI encontrava-se uma biografia de um outro bombista, Timothy McVeigh, que em 1995 fez explodir um edifício governamental em Oklahoma City, matando 168 pessoas. Mas as ligações "bombistas" não ficam por aqui. No carro de Timothy McVeigh, por seu turno, foi encontrado um outro livro, chamado "The Turner Diaries", publicado em 1978 por William L. Pierce, sob o pseudónimo "Andrew MacDonald". "The Turner Diaries" é a bíblia da extrema-direita americana.Ora, é comum ouvir-se um pouco por toda a parte, e Portugal não foge à regra, que a actual Administração americana de George W. Bush é de "extrema-direita". Muitos cronistas promovem esta ideia e as audiências acabam por ser intoxicadas com este mito. Diogo Freitas do Amaral, por exemplo, não perde uma oportunidade para denunciar os zelosos da extrema-direita que se apoderaram do Governo americano, como se Washington tivesse sido tomada de assalto por um bando de fanáticos representantes de uma direita intolerante, radical e fundamentalista. Uma pergunta, contudo, impõe-se: de que "extrema-direita" se está a falar? Os parágrafos que se seguem tentam descrever a ideologia da extrema-direita americana. A verdadeira. Aquela que realmente existe. A América X. A extrema-direita americana é constituída por diferentes grupos, uns seculares, outros religiosos, que, contudo, aderem a um núcleo ideológico comum. Existem princípios permanentes partilhados pelos diferentes grupos da extrema-direita americana. Acima de tudo, existe uma oposição visceral ao Governo federal visto como um inimigo intruso, cujo poder põe em causa a autonomia e liberdade dos indivíduos. A esta rejeição cultural do Governo federal encontra-se intimamente ligada, por exemplo, o movimento das milícias militares e do paramilitarismo. Este movimento cresceu enormemente nos anos 90, sobretudo devido a episódios como o de Waco, no Texas, em 1993, onde o assalto das tropas federais ao culto religioso de David Koresh provocou a morte a dezenas de pessoas. Waco foi encarado como o símbolo da opressão federal a tudo aquilo que desvie da norma, a todas as manifestações de heterodoxia relativamente a Washington. Este movimento está mais enraizado em estados como o de Montana e Idaho mas encontra-se um pouco por toda a América, embora, comparado com o início dos anos 90, se encontre em declínio. Assim, é possível encontrar grupos fortemente armados à espera da "invasão federal" e dispostos a lutar até à morte pela sua independência e direito à "heterodoxia". Se o Governo federal é o inimigo número um, o movimento da globalização tem entrada directa no segundo lugar. A extrema-direita americana é conspiracionista e vê na globalização uma cabala destinada a destruir as raízes e os valores e princípios das comunidades locais. A globalização não só leva à transferência de empregos para o exterior, como é responsável por esse "mal absoluto" que é uma sociedade multicultural e multirracial. É que a extrema-direita americana é etnonacionalista e defende uma homogeneização interna da comunidade nacional baseada sobretudo em laços de sangue. Não se estranha, portanto, que seja xenófoba e visceralmente contra a imigração.Os ideólogos da extrema-direita não se cansam de citar a previsão da agência de censos americana que a população branca vai deixar de ser maioritária na América a partir de 2050. Existe um profundo desespero existencial e a convicção firme de que é preciso fazer algo para parar este processo de destruição da cultura "nativa". Por detrás desta cabala chamada globalização encontra-se algo vagamente caracterizado como o "sistema", constituído pelas elites políticas e em última instância controlados pelas forças do judaísmo.A extrema-direita americana é anti-semita. Os judeus controlam secretamente o mundo e personificam o próprio processo de globalização, apátrida e sem lealdades nacionais disposto a tudo rumo à homogeneização de todas as culturas, em todos os países. A nível religioso este anti-semitismo é promovido pela ideologia da "Christian Identity", que vê nos anglo-saxónicos os verdadeiros descendentes das dez tribos da Israel bíblica e define os judeus como impostores.Finalmente, a extrema-direita americana é profundamente crítica de qualquer intervenção americana no mundo, opondo-se nomeadamente à recente segunda guerra do Golfo, qualificando-a como uma "empresa imperial" destinada a consolidar a "nova ordem mundial" referida pelo antigo Presidente americano George Bush, em 1990. A guerra é caracterizada como a "grande mentira" e destinada a abrir caminho à terceira guerra mundial e ao avanço da amalgamização do mundo. No fundo, a extrema-direita americana assenta a sua filosofia numa rejeição de um mundo em permanente mudança. Através da ideia da conspiração, oferece às pessoas uma chave de interpretação da história, ajudando a compreender o mundo e a torná-lo mais "racional". A teoria da conspiração é sedutora e sempre funcional.Recapitulando, a extrema-direita americana é antigovernamental, antiglobalização, isolacionista, xenófoba, anti-semita e conspiracionista. E, claro, "anti-imperialista". Ao lermos "The Turner Diaries" fica-se surpreendido, sobretudo, pelo nível de paranóia que o medo dos "fantasmas" e "daquilo que não sabemos" pode provocar em mentes, à partida, racionais. Talvez seja preciso ter cuidado com certas generalizações abusivas, que, para além de erradas, podem contribuir para uma visão paranóica da história. O debate público não deve ser reduzido à boçalidade e ignorância da cultura dos "graffiti", tipo "Bush=Hitler" que se vêem em muitos muros de Portugal. Quando isso acontece, somos todos nós que perdemos. Sobretudo aqueles que, devido ao seu passado político e cívico, deveriam ter a capacidade de resistir à tentação de cair no fácil e no sensacionalismo. E, por que não dizê-lo, de cair no errado.Universidade de Boston

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