Romenos: nómadas parados no sinal vermelho

Verde, vermelho. A cor dos semáforos rege a cadência de recuos e avanços de uma mulher de 21 anos. De modo repetitivo e metódico, ela aproxima-se dos carros. Um a um, a eito: os três primeiros da faixa esquerda, depois os da direita. O percurso tem a configuração da letra "U" e a mão que pede esmolas a forma de uma concha. A outra mão segura uma criança de dois anos. A menina chama-se Vasila. Um boné azul protege a miúda do sol forte das 13h00. Mãe e filha são romenas e vivem, há cerca de um mês, do dinheiro que arrecadam no cruzamento da Rua da Quinta Amarela com a Rua Oliveira Monteiro, no Porto. Uma situação que, desde 2002, se tornou comum em determinadas artérias da cidade. Vasila e a mãe são exemplos das dezenas de cidadãos romenos que incluem o Porto na rota das suas itinerâncias Europa fora. Trata-se de uma comunidade de etnia cigana chamada "Roma", que vive quase exclusivamente de donativos. Ao contrário de outros romenos que chegam a Portugal para trabalhar, este grupo específico não costuma criar raízes. Vive um dia de cada vez, sem residência fixa, em movimento contínuo. Quando as luzes vermelhas fazem os motoristas parar, são eles que entram em actividade - mulheres munidas de crianças ao colo, homens apetrechados com detergentes para limpar vidros automóveis. Muitos alegam não possuir qualquer documento, nem falar português. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) considera que este fenómeno urbano é recente, tendo ganho expressão em Lisboa a partir de Fevereiro de 2002 e, mais tarde e em menor dimensão, no Porto. Hoje, o SEF acredita que "a vaga de cidadãos romenos em Portugal refluiu". Isto porque a entidade garante ter realizado várias operações de fiscalização, em parceria com a PSP, que têm como objectivo não só "controlar a permanência ilegal" no país, mas também "evitar casos evidentes de exploração de crianças na mendicidade, o que, à luz do Código Penal, é tipificado como crime". A utilização de bebés para peditórios também é motivo de preocupação para as forças de segurança pública. No passado dia 20 de Junho, por exemplo, a PSP do Porto identificou uma romena de 32 anos a mendigar com um bebé de apenas dez dias. Submetido ao calor excessivo, o recém-nascido apresentava sinais de desidratação e queimaduras solares na face. A criança foi imediatamente transportada para o Hospital de São João, no Porto, onde ficou internada "contra a vontade da mãe, que acabou por perder a guarda da criança para a Segurança Social", revelou fonte policial. O processo de expulsão da pedinte romena do país ainda está em curso. Em 25 de Setembro de 2002, um caso semelhante aconteceu em Vila Nova de Gaia. "É inadmissível a utilização de bebés para a mendicidade. Temos de salvaguardar as crianças, impedindo a sua utilização por essas máfias", frisa Paulo Morais, vice-presidente da Câmara do Porto. O autarca diz que este executivo camarário colabora "com frequência" em iniciativas de integração do Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Éticas (ACIME), "cujas instalações no Porto são, aliás, cedidas pela própria Câmara". No entanto, Vítor Marques, líder da União Romani, chama a atenção para o facto dessas mães ciganas "simplesmente não terem com quem deixar os filhos". A pequena Vasila, por exemplo, tem como referências no Porto apenas a mãe e o passeio onde dorme diariamente. A mãe de Vasila, a quem chamaremos de Maria, está grávida de oito meses. Possui uma pele cor de caramelo e um corpo magro escondido pela saia verde e comprida. Um olhar menos atento não percebe que Maria guarda no ventre o seu terceiro filho. Vasila já tem um irmão, de quatro anos, que está na Roménia. "Mãe com filho. Miséria. Não há comida", explica Maria com um português que claudica. Para transmitir a imagem da fome, faz uma leve sucção nas bochechas e produz a mais lânguida das expressões faciais. Ela espera um dia juntar dinheiro e trazer o filho mais velho, amparado agora pela avó, da Roménia para Portugal. O seu companheiro "em Espanha... vidro... carro". Ele provavelmente não assistirá ao parto do filho que, se depender da vontade de Maria, verá a luz em solo português. Nos últimos 12 meses, a PSP do Porto registou mais de 140 ocorrências envolvendo cidadãos romenos. Quando estão a pedir dinheiro mas estão em situação regular junto ao SEF, são apenas identificados. Além da habitual mendicidade com crianças, há ainda notícia de casos pontuais de furtos em lojas. A situação mais grave assinalada pela PSP é a dos roubos em caixas Multibanco, em Julho de 2002. Os sete cidadãos envolvidos, com idades entre os 20 e os 34 anos, foram detidos e presentes em tribunal. Cinco deles nem sequer possuíam documentos. A embaixada da Roménia em Portugal, garante a conselheira cultural Anca Milu, tem emitido todos os papéis necessários para o repatriamento - desde o simples bilhete de identidade até ao título de transporte. No entanto, esta embaixada afirma não ter recebido até hoje "nenhuma solicitação de apoio por parte dos cidadãos de etnia cigana que estão no Porto". Para o SEF, isso acontece porque, regra geral, "a notificação para abandono voluntário do país é cumprida", uma vez que é precisamente a sucessão contínua de paisagens que os move.Nem todos os processos, porém, são "amigáveis". Os números relativos a Lisboa mostram que houve, em 2002, 69 detenções com instauração de processos de expulsão. A comunidade romena de etnia cigana "Roma", assim identificada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mantém ainda hoje um modo de vida nómada - condição que já foi quase abandonada pelos ciganos portugueses. "Têm uma postura muito diferente da nossa. Vivem em clãs familiares, revelam uma relutância em falar com as pessoas. Talvez com receio de estarem, na verdade, próximo de membros do SEF ou da PSP. Mesmo quando contactados por nós retraem-se", refere Vítor Marques, presidente da União Romani Portuguesa, associação que congrega, desde 1993, mais de 55 mil ciganos do território continental e insular. Por não terem residência fixa, estes romenos dormem em viaturas, tendas improvisadas ou nos passeios. Aparentemente, seguem uma lógica de subsistência imediata: o dinheiro arrecadado numa manhã nos semáforos, por exemplo, pode ser gasto logo na refeição seguinte. Compram produtos que prescindam de cozedura, em mercearias ou supermercados, e alimentam-se em espaços públicos. A embaixada da Roménia em Portugal refere que, no passado, esta comunidade era pouco acarinhada na própria Roménia. "Mas ultimamente as autoridades romenas têm-se empenhado em vários programas de inserção social e de melhoramento do nível de instrução", assegura Anca Milu. O investimento na educação é visto como fundamental uma vez que, por regra, as crianças não frequentam a escola. É a tradição oral que assegura a passagem de saberes e valores entre as gerações. Após o esforço do governo romeno "para corrigir os antigos clichés negativos acerca deste grupo étnico", a embaixada considera que estas comunidades "não são mais discriminadas pelo seu carácter nómada". Cada um tem o seu limpador de pára-brisas em excelente estado, bem como pequenas garrafas plásticas com uma solução de água e detergente. São quatro rapazes, com idades entre os 16 e os 21 anos. Elegeram o cruzamento da Rua da Galiza, no Campo Alegre, para angariar as moedas necessárias para o almoço. A ementa de hoje é uma cebola, um tomate, bacon em pedacinhos, pão e queijo. Dividem e comem os alimentos com as mãos. Demétrio, vestido com uma camisola azul e calças de ganga, oferece sorridente a exígua refeição aos jornalistas. A limpeza de pára-brisas é, para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), uma evolução das técnicas de mendicidade. "No início, usavam cartazes ou folhetos e actuavam junto de semáforos, mas também nas ruas, em cafés, esplanadas e restaurantes", refere o SEF. Depois, "abandonaram a forma do bilhete a pedir uma contribuição e, entretanto, foram evoluindo nas formas de pedir dinheiro", explica Vítor Marques, presidente da União Romani Portuguesa. No entanto, Demétrio conta que ganha muito pouco com a actividade nos semáforos. Apenas o suficiente para comer e retornar para o acampamento, num terreno contíguo ao Hospital de São João, no Porto. "Possuem uma grande resistência ao assalariamento e um profundo alheamento às instituições e aos esquemas de formação profissional. Mas as próprias instituições ainda não encontraram a forma mais eficaz de chegar até eles", sublinha o sociólogo Fernando Luís Machado, do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa.Os vectores que compõem o comportamento do grupo "desde tempos muito antigos", acredita Fernando Luís Machado, mantêm as dificuldades de um eventual cenário de integração social. Os hábitos arreigados terão impulsionado esta comunidade a manter um modo de vida fechado em si mesmo. Estas características funcionam, de resto, como um mecanismo de auto-protecção que lhes possibilitou "adquirir notáveis competências cognitivas, apesar de serem muitas vezes analfabetos, e uma assinalável capacidade de contornar constrangimentos institucionais", observa o sociólogo.

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