De monty a monty, passando por paul

Em "A Última Hora", Spike Lee dá-nos a conhecer aquele que é, porventura, o mais comovente de todos os seus protagonistas: Montgomery Brogan (Edward Norton), um traficante a caminho da prisão. A (sua) queda está cada vez mais iminente e, por isso, desde o começo do filme, ele é um homem em perda, que tenta desesperadamente controlar a ansiedade, afligido por um misto de culpa, raiva e impotência face a uma implacável sina.

Um homem (já) derrotado, como se a sua masculinidade tivesse sido "amputada", e um tipo de figura que encontra antepassados ilustres em dois ícones dos "fifties", Montgomery Clift e Paul Newman. Não se trata de um delírio de cinefilia; a memória desses actores é convocada durante o filme.

O primeiro, de um modo directo, pois ficamos a saber que Montgomery se chama assim em homenagem ao actor preferido dos pais, Clift; o segundo, de forma não tão óbvia (mas nem por isso menos explícita), através do enquadramento obsessivo e constante do poster do filme "Cool Hand Luke/O Presidiário" (1967) - onde Newman teve um dos mais memoráveis papéis da sua carreira -, que Monty Brogan tem colado na parede do apartamento (o filme preferido?).

Estamos na presença de dois "fantasmas" cuja presença "assombra" todo o filme, algo evidente quer na atmosfera que nele se faz sentir, quer na construção da personagem principal. De facto, será mesmo um dos maiores prazeres de "A Última Hora" a descoberta, através desse jogo de pistas para uma possível "ascendência", dos vários pontos de contacto e relações que se podem estabelecer entre as figuras de Clift e Newman e a de Brogan (e do actor que lhe dá corpo, Norton).

Amputação

Desde logo, podemos começar pela ideia da "amputação" do (anti-)herói, alguém que caminha sempre para uma (auto)destruição inevitável, motivada por um qualquer "erro". É algo que está presente de forma gritante no filme (ou não retratasse ele o último dia de liberdade de um futuro presidiário), já que, desde o início, o destino de Monty está traçado - os anos de tráfico de heroína hipotecaram-lhe o futuro e garantiram-lhe uma estadia na prisão durante sete anos. Como o próprio título indica, em "O Presidiário" a sorte de Luke (Newman) não era diferente, com uma noite de bebedeira (e a destruição de alguns parquímetros) a valer-lhe uma pena de dois anos numa prisão do Sul americano e, depois, a morte.

E o que dizer de Monty Clift, a cuja carreira e vida esteve sempre associada esta ideia de beleza que leva à violência e destruição? No primeiro caso, bastará referir o icónico "Um Lugar ao Sol" (1951), de George Stevens, em que a inebriante paixão do jovem de classe operária, que o actor interpreta, pela rica Elizabeth Taylor o leva a ponderar matar a namorada grávida (Shelley Winters) e põe em marcha uma inelutável série de acontecimentos que tem como ponto final a prisão e a cadeira eléctrica. Neste segundo caso, recorde-se a existência turbulenta e torturada do actor - entre a dependência do álcool e drogas, o sentimento de culpa em relação à sua (bis)sexualidade e o acidente que o desfigurou e deixou com deficiências físicas, obliterando a sua confiança - que culminaria na sua trágica morte aos 45 anos.

Essa destruição surge assim associada (e a vida de Clift é, de novo, um caso paradigmático) a um forte pendor masoquista. Volte-se então ao filme de culto de Stuart Rosenberg, em que o inconformismo e a teimosa independência de Luke/Newman são responsáveis pelas brutais sevícias dos guardas e o conduzem à morte. Também nos filmes de Clift se encontra essa pulsão - as violentas agressões físicas sofridas em "Rio Vermelho" (1948), de Howard Hawks, e "Até à Eternidade" (1951), de Fred Zinneman, provocadas pelo desafio a figuras autoritárias.

O Monty de Norton também apresenta esta característica, ao pedir ao amigo para o desfigurar, uma punição voluntária que tem por fim evitar o seu pior pesadelo: a violação na prisão e a consequente perda de virilidade. Aliás, essa "castração" simbólica remete para outra, bastante mais real, cuja ameaça paira sobre o "gigolo" que Newman compôs em "Corações na Penumbra" (1962), de Richard Brooks. Se tal acaba por não se concretizar, no final dessa adaptação de Tenessee Williams há mais uma sova que termina noutra desfiguração (e, por esta altura, sofrimento autoprovocado era algo que Newman conhecia bem - pense-se nos polegares partidos do arrogante "Fast" Eddie Felson, no "The Hustler" de Robert Rossen...).

Passando para a questão do carácter torturado, também aqui os paralelos são evidentes. A introspecção de Monty e o registo minimal de Norton não podem deixar de ser associados à "persona" de Clift: passa pela personagem principal de "A Última Hora" a mesma mortificação e o mesmo angustiado tormento interior que o actor exibiu ao longo da carreira (e aproveite-se para voltar a trazer à baila "Um Lugar ao Sol" e assinalar que, apesar de todas as diferenças que os separam, há no clássico de Stevens e na majestosa sinfonia de Lee, duas obras que não respiram propriamente esperança, uma tristeza melancólica e uma aura de opressão análogas). Essa contenção emocional quase doentia, fadada a explodir a qualquer momento, remete também para Newman, em especial o Brick Pollitt de outra incursão de Brooks pelo universo sulista de neuroses sexuais de Williams, "Gata em Telhado de Zinco Quente" (1958).

Sugerir correcção
Comentar