As virgens de Paula Rego chegam a Belém

Que a arte "nos faça abrir os olhos". O desafio é lançado pelo padre e poeta José Tolentino Mendonça, a propósito das oito telas de Paula Rego representando cenas da vida da Virgem Maria que, no final do mês, deverão chegar ao seu local de destino: a capela do Palácio de Belém, em Lisboa.As obras partiram de uma encomenda do próprio Presidente da República, Jorge Sampaio, durante a sua visita oficial ao Reino Unido, em Fevereiro, no âmbito da qual visitou o atelier da pintora, "uma querida amiga de há muitas décadas", em Kentish Town, no norte de Londres.Os quadros - 54 por 52 cm, os mais pequenos que Paula Rego já executou - irão figurar na capela da residência oficial do Presidente da República, juntamente com um óleo de André Reinoso, "Adoração dos Pastores", do século XVII. Este último, que se encontrava nas reservas do Museu Nacional de Arte Antiga, será a peça de altar, que, segundo José Manuel dos Santos, assessor cultural de Sampaio, serviu de "mote" para as representações de Paula Rego. Trabalhando a partir das fontes bíblicas, mas também dos Evangelhos Apócrifos, nomeadamente da "Legenda Áurea", de Jacobus de Voragine, a pintora retrata a Virgem, da Anunciação à Assunção, revisitando outros seis episódios conhecidos, entre os quais a Natividade. Se todos evidenciam o distinto universo visual de Paula Rego, sendo menos uma descrição literal do que uma apropriação, é o quadro da Natividade que, porventura, vai mais longe na sua reinterpretação dos paradigmas clássicos: a Virgem surge numa pose de pré-parto, com uma expressão dolorosa, deitada no regaço de um anjo efeminado. "Não tem uma pose própria do ser hierático que foi e é Nossa Senhora", diz D. Januário Torgal, bispo das Forças Armadas. "Confesso que, ao vê-la, tive dificuldades primeiras. Mas nisto, como em todas as coisas, não posso ter um juízo de valor acabado. Sempre aprendi que, diante de grandes mestres, devemos esforçar-nos por subir a escada para tentar aprender com eles. Acho que sou convidado a uma atitude de discípulo, a aprender."Ressalvando que "um dia até gostaria de escrever um artigozinho sobre essa peça, que é muito bonita", o padre Carlos Azevedo, vice-reitor da Universidade Católica, onde ensina Arte Cristã, considera que "esta representação do parto de Maria, com os clássicos animais, boi e jumento, apontados no fundo escuro", reserva "um certo apelo para o clássico através dessa alusão". A tela, prossegue, "tem uma força inquietante e misteriosa na esperança d'O que vai nascer. Dentro do estilo habitual de Paula Rego, onde os rostos são retratados com dureza, tem um vigor capaz de suscitar no crente um espaço de silêncio. Esse silêncio pode ser habitado pelo advento de Cristo." Este padre e historiador, que comissariou uma exposição de arte sacra na Alfândega do Porto, em 2000, encontra na Natividade de Rego semelhanças com "o realismo do parto" de uma escultura de um artista peruano do século XX que esteve presente na referida mostra. Apontando pormenores, como o azul da veste de Maria, "lindíssimo", sublinhando "um sentido de transcendência", diz que "a arte contemporânea não é facilmente entendida, tem que ser explicada". Até porque, "se o autor exprimiu aquilo, fê-lo na verdade de uma experiência".O poeta João Miguel Fernandes Jorge, que tem vários livros publicados sobre artes plásticas, sugere que o quadro de Paula Rego tem pontos de contacto com as imagens de Nossa Senhora do Ó, retratando a Virgem durante a gravidez, com a mão esquerda posta sobre a barriga inchada: "Aproximar-se-á das representações mais brutas da tradição das Senhoras da Expectação da Baixa Idade Média". Populares em Portugal à altura, foram progressivamente retiradas dos altares durante a Contra-Reforma, por se considerar desapropriado retratar a Mãe de Deus na sua gravidez. "Se escolheram as pinturas de Paula Rego para essa capela, escolheram bem. Também me parecia bem uma dessas Virgens negras de Cris Offili, com excremento de elefante."Já Tolentino Mendonça sublinha o ineditismo de Paula Rego. "Penso que não é exactamente a Senhora do Ó, que tem ainda um certo carácter estático. Mas é esse momento em que Deus se torna presente pelo mais humano dos milagres, que é o da geração da vida. E aquela representação [de Paula Rego] é alguma coisa de inédita, que nos faz pensar, que faz vir pensamentos - e isso é muito bom". Se há algo de provocatório na proposta da pintora é "no melhor dos sentidos": "Aquilo que espanta nestas representações é que não têm o carácter estático que é tradicional na iconografia mais comum. Têm alguma coisa de dinâmico. E isso faz parar as pessoas. Sempre que a arte sacra, e a arte simplesmente, se renovaram, foi exactamente porque deixaram a tradição, o modo tradicional como as coisas são representadas, e ousaram fazer de maneira diferente.""A arte sacra actual é quase inexistente"Sendo essa a ousadia de Paula Rego, estaremos dispostos a aceitá-la? "As peças não são nem especialmente polémicas, nem especialmente provocatórias", afirma o arquitecto José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja."Claro que há sempre pessoas prontas a escandalizar-se com tudo, até com aquilo que não deveria fazer escândalo. A arte sacra actual é quase inexistente. As pessoas estão mais habituadas a ver aqueles horrorosos santinhos de Fátima, e não compreendem que tem de haver espaço para que os grandes artistas contemporâneos também se exprimam. E que o façam naturalmente, com a liberdade que outros artistas tiveram."D. Januário Torgal não poupa críticas à estrutura cultural do catolicismo português. "Conhecendo eu a sensibilidade e a cultura do sector católico, disse cá com os meus botões: 'Isto vai levantar problemas de gosto a muitas pessoas'. Há certas formas de imaginário que as pessoas, num primeiro contacto, não aceitam. Tem que ser tudo muito convencional, estabelecido. E, por vezes, o que é lamentável é olharem para certas construções artísticas e julgarem-nas menos respeitosas ou respeitadoras. Não tenho dúvidas de que muita gente vai julgar Nossa Senhora ali deitada [na Natividade] como uma atitude que não enquadra bem com o recolhimento, a austeridade."Se a capela do Palácio de Belém, pelas suas características, não tem qualquer função de culto religioso, sendo intenção da Presidência da República torná-la num espaço de interesse cultural e museológico, D. Januário Torgal não duvida de que a série de pinturas de Paula Rego "são um convite à Igreja a estar sempre presente no mundo da cultura e da beleza. E a explicar, sem querer impor, a falar e discutir, como se discute a arquitectura de uma igreja, uma escultura belíssima, uma peça de teatro ou um filme". E remata: "Mas já viu grandes propostas de beleza do campo católico? Não viu. Pouco, muito pouco."João Miguel Fernandes Jorge salienta que "o sentido do religioso e do sagrado vai faltando às igrejas, sobretudo se pensarmos no mau gosto habitual do clero no que respeita a arte sacra actual". Para ele, "Paula Rego quebra, precisamente, essa beatice. O seu realismo, ao menos, anulará o delicodoce."Segundo José António Falcão, "continuamos a olhar para o passado com uma nostalgia vazia, como se isso evitasse termos de responder às interpelações que nos são dirigidas. A sociedade portuguesa vive alheada de muitos problemas que se colocam no âmbito do património religioso, nomeadamente no que toca ao diálogo com os artistas contemporâneos. As críticas dirigidas a um autor circunspecto como Siza Vieira [autor do projecto da Igreja de Marco de Canaveses] são bom exemplo disso."O arquitecto garante ainda que "é extremamente importante, para Portugal, poder contar" com as pinturas de Paula Rego. "Conheço muitos museus, e alguns museus de arte sacra do mundo, que estariam dispostos a desenvolver grandes esforços para conseguir uma série deste tipo. Temos investido muito pouco em arte contemporânea e, particularmente, em arte religiosa."As virgens de Paula Rego são arte religiosa? Como sugere Tolentino Mendonça, "o facto de se considerar religiosa ou não é algo exterior à própria pintura. Uma coisa é o valor e a beleza da pintura, que é uma espécie de imanência; outra coisa é dizer que tem um carácter religioso e deve ser colocada num espaço sagrado". A série de Rego caberá na primeira categoria, "absolutamente", pela sua "religiosidade como beleza imanente". Conclui o padre e poeta: "Eu era capaz de rezar junto de uma dessas pinturas."

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