Natal: Factos e mitos de uma história única

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As últimas investigações situam a data do nascimento de Jesus antes da morte de Herodes, o que significa entre os anos 3 e 6 antes da era cristã DR

Poesia ou história? O Natal é um dos acontecimentos da humanidade mais recordados. Embrulhadas em mitos e símbolos, as narrativas do nascimento e da infância de Jesus têm preocupações essencialmente doutrinais. Nesse sentido, recorrem à alegoria, à poesia, à linguagem mágica dos sentidos para contar verdades que para os cristãos são essenciais.

Há muitas ideias feitas sobre o Natal, herdadas de séculos de tradições, que a exegese bíblica clarificou nas últimas décadas, mas que permanecem na cabeça de muitas pessoas. Aqui fica uma viagem pelas certezas que já há e pelas dúvidas que subsistem.

Foi um anjo que apareceu a Maria a dizer-lhe que ia ser mãe?

Para os judeus, Deus é de tal modo o Inacessível que "não podiam imaginá-lo aparecendo a todo o momento para comunicar", lembra Jacques Duquesne. Por isso aparecem os anjos, como mensageiros ou intermediários. Os relatos que se referem a anjos têm todos a mesma estrutura: "Aparição, medo, predição, prova, recitação dos salmos ou de orações." Não são, portanto, relatos históricos, mas "literatura". Tal como os sonhos – de José no Egipto ou de José, noivo de Maria – são formas de comunicação usadas pela Bíblia para dizer que é Deus a falar.

Jesus não nasceu no ano 1

Os relatos dos evangelhos, que foram escritos já no final do século I – ou seja, décadas depois dos acontecimentos a que se referem –, e cuja preocupação essencial era a afirmação de fé das primeiras comunidades cristãs e não o rigor histórico, não coincidem em relação à época do nascimento de Jesus. As últimas investigações situam a data do nascimento de Jesus antes da morte de Herodes, o que significa entre os anos 3 e 6 antes da era cristã, ou era comum. Alguns investigadores apontam mesmo o ano 12 a.C., quando o cometa Halley (que poderia ser a estrela dos magos) passou por Jerusalém. No século VI, um monge que vivia em Roma – Dionísio, o Pequeno – tratou de arranjar mais confusão, ao estabelecer que o nascimento se tinha dado no ano 752 do calendário romano, que seria o ano 1 da era cristã, quando na realidade foi vários anos antes.

Jesus não nasceu a 25 de Dezembro

Os primeiros cristãos, explica Jacques Duquesne, "pensavam que a nova religião seria mais bem aceite se não rompesse demasiado com os usos e ritos antigos." Como os romanos assinalavam a 25 de Dezembro o dia em que o Sol começa a crescer – o "Dies Natalis solis invicti" [de onde sairia depois a palavra Natal] –, e como para os cristãos Jesus era a nova luz, um novo Sol da humanidade, a sobreposição de datas era simples. A institucionalização do Cristianismo como religião do imperador fez o resto: a primeira vez que a festa foi celebrada como Natal de Jesus parece ter sido no final do reinado de Constantino (que morreu em 337).

Jesus nasceu em Belém?

Esta pergunta não tem uma resposta consensual entre os investigadores. Para o “Evangelho” de Mateus, que se dirigia essencialmente aos judeus e às comunidades judaicas espalhadas pelo mundo de então, era importante dizer que Jesus nasceu naquela cidade. É que os judeus esperavam um Messias que ali havia de nascer e esse facto confirmaria a ascendência divina de Jesus. Mas no “Evangelho” segundo S. João, conta-se que o facto de ele se ter identificado como salvador dividiu a multidão que o ouvia. E alguns perguntaram: "O Cristo [Messias] virá da Galileia? Não diz a Escritura que é da descendência de David e da povoação de Belém?". Nem Jesus nem nenhum dos seus seguidores insiste no nascimento em Belém. O que indicia, na opinião de alguns, que não teria sido o caso...

Os pais de Jesus não eram velhos

José velho, de barbas e bengala? Maria já feita mulher madura? As imagens foram divulgadas em muitos quadros da pintura ocidental e por muitos dos maiores nomes da história da arte. Mas ela não corresponde à realidade. Charles Perrot explica: "Segundo os costumes de então, o matrimónio celebrava-se em dois tempos. Uma vez celebrado o compromisso mútuo que unia juridicamente os dois esposos, a esposa continuava em casa de seus pais durante aproximadamente um ano, até ao dia em que o esposo a levava consigo para fazerem vida comum. A frase ‘antes de coabitarem’ refere-se a este costume. Durante [esse ano] geralmente não eram permitidas relações conjugais, pelo menos na Galileia. Não esqueçamos que as jovens se casavam, ou antes, eram dadas em matrimónio entre os doze e os quinze anos. E os jovens não eram muito mais velhos".

Jesus não nasceu numa gruta, nem havia burro nem vaca

Diz o texto do “Evangelho” segundo S. Lucas que, quando se completou a gravidez, Maria "teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria". O relato de São Mateus, ao falar da visita dos magos, diz que estes, "entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe" – uma indicação também de que a visita deve ter decorrido tempos depois do nascimento. A tradição da gruta nasce no século II, a vaca e o burro serão "introduzidos" por Francisco de Assis. Com o presépio, o mesmo santo vulgarizou a imagem de um bebé quase despido, o que não corresponde ao relato. Afinal, uma mãe não deixaria de aquecer o seu filho...

Os reis magos não eram reis

Esta é uma história com muita intencionalidade. Impropriamente chamados reis magos na tradição latina, os três sábios (ou seriam mais?) que vieram do Oriente (para os judeus, tudo o que estava para lá do rio Jordão) eram conhecedores da astrologia, na qual já muita gente acreditava, naquela época. Por isso, o autor do “Evangelho” de São Mateus coloca os astrólogos a prostrar-se perante o novo "astro". Mais ainda: o episódio põe em contraste a atitude de Herodes, que quer apanhar Jesus, com a dos magos, pagãos que vêm de longe para adorar o Messias. Uma forma de Mateus acentuar que Jesus vem para salvar todos os povos.

A "matança dos inocentes" não aconteceu

O historiador judeu Flávio Josefo, que narrou muitos episódios da vida de Herodes, nunca falou de qualquer massacre de crianças com menos de dois anos de idade. Mais uma vez, o evangelista Mateus, que se dirige essencialmente a um público judaico, quer convencer os leitores de que Jesus é o Messias. Para isso, usa uma história análoga à da matança das crianças egípcias, quando os judeus se preparavam para deixar o Egipto. O relato – provavelmente inspirado em outras perseguições ordenadas por Herodes – pretenderia, assim, dizer que, tal como com Moisés e os judeus no Egipto, há sangue que deve correr para que a libertação possa ocorrer.

Jesus teve ou não irmãos?

O evangelista Marcos fala duas vezes dos "irmãos" de Jesus, mas há outras passagens que, sobretudo para a teologia católica e ortodoxa, sustentam a ideia de que Jesus não teve outros irmãos, filhos da mesma mãe. O substantivo "irmãos" designaria familiares próximos e não irmãos de sangue como hoje se entende. Uma urna cuja descoberta foi noticiada no final de Outubro fala de "Tiago, filho de José, irmão de Jesus". O ossário, além de ser a primeira confirmação extrabíblica da existência de Jesus, apesar de não ser uma prova definitiva sobre esse facto, poderia ajudar a fazer mais luz sobre o assunto. Havendo especialistas que pensam que houve irmãos de Jesus, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, o consenso sobre a matéria não existe, embora a maior parte dos exegetas considerem a questão como secundária.

José não era um "pobre carpinteiro"

Para os judeus, como explica Jacques Duquesne, o trabalho manual era sagrado. Artesãos, lenhadores, padeiros eram profissões consideradas, numa sociedade marcada pela sobrevivência agrícola. De tal modo que o “Talmude”, o comentário à lei judaica, conta que em alguns processos mais delicados se perguntava pela presença de um carpinteiro que soubesse responder a determinadas perguntas, mais delicadas, sobre regras e medidas. Por isso, José não era um miserável, mas seria um dos notáveis da aldeia.

Os textos dos evangelhos são da ordem simbólica

Duquesne fala dos “Teologúmenos”, já se disse, como imagens para explicar questões de fé. O mesmo autor sublinha o carácter simbólico e poético da maior parte das narrativas da infância de Jesus. Charles Perrot refere mesmo que, no caso de Mateus, esses trechos podem ter sido acrescentos tardios ao original. Para os evangelistas, o essencial era transmitir determinadas mensagens fundamentais. Por isso Mateus se dirige essencialmente aos judeus, Marcos quer proclamar a chegada do Reino de Deus, Lucas fala mais para as comunidades helenísticas e João faz uma profunda reflexão teológica sobre Jesus. Algumas passagens parecem contraditórias de um evangelho para outro. Para os evangelistas, explica ainda o autor de "Jesus", o essencial era proclamar a verdade, o que não quer dizer que o que é escrito seja verdade histórica.

Bibliografia fundamental: "Jesus e a História", Charles Perrot, Editorial Perpétuo Socorro, 1985; "Jesus", Jacques Duquesne, Círculo de Leitores, 1997; "Narrativas da Infância de Jesus", Charles Perrot, Difusora Bíblica, 1981; "Jesus de Nazaré, Quem És Tu?", Editorial Franciscana, 1991.

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