Os verdadeiros donos do Afeganistão

Karzai tentou colocá-lo do seu lado nomeando-o "representante especial" para o Norte do país. Depois da queda dos taliban, Dostum recuperou o seu antigo domínio na região em redor da cidade de Mazar-i-Sharif, onde em tempos chegou a ter a sua própria moeda e companhia aérea particular. Hoje é vice-ministro da Defesa do Governo interino e, segundo a "Time", tem uma nova retórica e um novo visual. Este uzbeque de constituição forte, pescoço largo e sobrancelhas cerradas, cortou a barba (mas deixou o bigode) e arranjou um novo alfaiate. A ideia é renascer politicamente trocando a imagem de um dos mais cruéis e sanguinários senhores da guerra pela de um político respeitável, que até admite alguns erros no seu passado mas que hoje é um democrata que só quer servir o seu povo.Dostum não quer perder o que os novos tempos lhe podem oferecer, sublinha a "Time". Agora diz frases como "chegou o momento de nos defendermos não com tanques e exércitos, mas com a lei e partidos políticos legais". Um diplomata europeu baseado em Cabul ficou convencido: "Ele trocou o fato militar pelo de homem de negócios". Mas, pelo sim pelo não, manteve um pequeno exército de sete mil homens.O enviado da AFP a Cabul traça dele um retrato menos favorável que o do diplomata europeu. Dostum, escreve Alexandre Peyrille, continua a ignorar a autoridade central, recebe (e guarda) os impostos alfandegários, mas não hesitou em passear-se em Cabul ao lado do antigo rei Zahir Shah quando este regressou ao país. Mantém as suas opções em aberto, portanto. E tem uma preocupação: impedir que os seus aliados tajiques da Aliança do Norte, a facção Jamiat-i-Islami, a quem acusa indirectamente de serem "fundamentalistas", ameacem o seu domínio sobre as províncias do Norte. Espera, por isso, que a Loya Jirga o ajude a reforçar o poder do seu próprio partido, o Jombesh, e a diminuir o da Jamiat.É, segundo alguns analistas, a maior ameaça à autoridade de Karzai. Com uma milícia de 30 mil homens domina toda a parte ocidental do país, junto à fronteira com o Irão. No período do domínio dos senhores da guerra, antes do regime dos taliban, o tajique Ismail Khan era considerado um dos mais abertos e liberais. Hoje não é assim. Embora consiga manter a paz e a ordem nas zonas sob o seu controlo - como já acontecera no início dos anos 90, onde Herat e as províncias vizinhas eram praticamente as únicas em que as escolas e as restantes infra-estruturas funcionavam - é hoje muito mais fundamentalista em relação aos costumes. Não permitiu que as mulheres deixassem de usar a "burqa" e impediu as celebrações do Dia da Mulher a 8 de Março.Esta nova ideologia islâmica, explica o jornalista paquistanês Ahmed Rashid na "Far Eastern Economic Review", pode explicar-se em parte por ter passado um ano numa prisão dos taliban, mas também pelo seu exílio no Irão no final dos anos 90, em que se aproximou da "linha dura" do regime de Teerão.Agora são estes mesmos conservadores iranianos que o apoiam. E, sabendo que essa é uma situação que preocupa os Estados Unidos, Ismail Khan joga com isso. Tem conseguido que os iranianos reconstruam canais de irrigação e a velha estrada entre a fronteira e Herat, e que os americanos, para contrabalançar, também tenham começado a recuperar pontes, estradas e canais. Um sinal da importância da sua região é o facto de Khan ter sido o único senhor da guerra independente a receber a visita do secretário norte-americano da Defesa, Donald Rumsfeld, em Abril. Herat é, provavelmente, a província mais rica do Afeganistão e Khan goza de total independência financeira graças, sobretudo, aos impostos que cobra às centenas de camiões que diariamente tentam atravessar a fronteira irano-afegã carregados de bens de consumo - e que se recusa a partilhar com o Governo de Cabul.Este pashtun que domina a província de Paktika saiu do anonimato e tornou-se conhecido nos últimos tempos precisamente por desafiar o Governo de Cabul. O "Financial Times", que o entrevistou, considera-o "o melhor exemplo do fenómeno afegão dos 'senhores da guerra', que poderá levar à desintegração da autoridade central e ao regresso às guerras civis dos anos 90".Pacha Khan, que até muito recentemente foi um aliado dos americanos, tem uma filosofia simples: "O Governo tem que compreender que estou cheio de amor. Mas também tenho que ser amado". E na parede da sua casa tem uma frase que revela mais uma vez a sua sensibilidade: "Aqui não há lugar para a política. Só o coração governa esta terra". Este homem de farto bigode e sobrancelhas foi um dos 25 líderes locais afegãos convidados para as conversações de paz de Bona, em Dezembro, e depois disso os seus homens lutaram com os americanos contra a Al-Qaeda na operação Anaconda - e, dizem os seus opositores, ele usou a sua influência junto dos EUA para conseguir eliminar alguns rivais que identificou como sendo membros do grupo de Osama bin Laden. Mas Pacha não gostou das nomeações de Karzai para governadores locais e decidiu, em Abril, bombardear a cidade de Gardez com 100 rockets, numa atitude que descreveu como de "auto-defesa". Controlar Pacha Khan e submetê-lo à justiça tornou-se um dos maiores testes à autoridade de Cabul. Os americanos já reconheceram que "não há alianças permanentes" e deixaram cair o seu antigo aliado.

Sugerir correcção