O périplo de Otar Iosseliani até chegar ao Urso de Ouro

O pessimismo de Otar Iosseliani vai valer-lhe o Urso de Ouro da 52ª edição do Festival de Berlim? Não é um pessimismo qualquer. "Lundi Matin" é uma comédia. Mas o realizador georgiano precisa: "Como todas as comédias, é um filme triste. Como todas as comédias, é maldoso quanto baste. Este 'puzzle' da vida que construí é baseado na observação daquilo que nos rodeia e que é mau. A questão é: sendo um filme sobre questões tão sérias, só podia ser uma comédia".É este o tom - quando o pessimismo se materializa com um sorriso - do cinema de Iosseliani, o realizador de "Os Favoritos da Lua" (1984), "A Caça às Borboletas" (1992) ou "Adieu, Plancher des Vaches" (1998). Até se pode dizer que "Lundi Matin" é o mesmo filme de sempre: uma suspeita profunda em relação à natureza dos homens e às concretizações da aventura humana - "não há qualquer resultado positivo do esforço humano, de nenhuma revolução, nem da Revolução Francesa, nem da bolchevique, nem da revolução de Mao", disse, e não podia ser mais claro; e a amargura que se espraia num sereníssimo dispositivo formal, de filme mudo, que vai abrindo hipóteses de narrativa (mas só enunciando-as), cruzando outras, enfim, montando o "puzzle" que suporta uma parábola. No caso específico de "Lundi Matin", arabescos de burlesco à Jacques Tati (sobretudo o Tati de "Há Festa na Aldeia") servem o périplo de um Ulisses dos tempos modernos."Lundi Matin" é a segunda-feira de manhã de Vincent, de todos os homens, enfim, do Homem. É o quotidiano de um trabalhador (experiência como actor de Jacques Bidou, um produtor francês que já produziu Teresa Villaverde e Maria de Medeiros) que sai para o trabalho, que repete os mesmos gestos, que puxa sempre de um cigarro e que o esconde sempre atrás das costas quando esbarra invariavelmente com a indicação "proibido fumar". Vincent está farto da fábrica, da família, dos filhos e da aldeia (nos "puzzles" minimalistas de Iosseliani ficam traçados verdadeiros modelos de organização social e económica). O carteiro lê sempre o correio dos outros, as bicicletas circulam pelos mesmos atalhos, o pároco tem as mesmas escapadelas e já não há farda de trabalho que resista ao cigarro aceso que se teve que esconder no bolso. Já não há festa na aldeia, Vincent quer pintar um mundo novo, um país distante. Qual é a hipótese de um lugar distante e no entanto acessível, capaz de concretizar a fantasia humana? Que lugar é esse, semi-real, semi-fantástico? Veneza. E Vincent parte para Veneza. Para descobrir que no resto do mundo os quadros, como os duques ou os barões, são falsos, também há aldrabões (sobretudo, ladrões que tentam roubar o tempo) e também é proibido o gesto de uma individualidade: fumar. Vincent, este Ulisses impossível, regressa à aldeia. O cachecol que a mulher esteve a tecer na sua ausência vai agrilhoá-lo para sempre. E voltam-se a ver as chaminés fumegantes das fábricas onde não se pode fumar."É um filme sobre a solidão das pessoas, a solidão do mundo inteiro. Sobre a falta de tempo para viver, sobre o desejo de encontrar um outro lugar, ideal, de felicidade. Mas não há felicidade. Todo o mundo já é igual", dizia ontem o cineasta em conferência de imprensa. O cinema dele, ao contrário, é absolutamente individual. E puxou de um cigarro. "A proibição de fumar é hoje uma histeria popular dos Estados Unidos. Tornou-se uma doença psíquica: uns querem obrigar os outros a viver de uma certa maneira. Eu não preciso de enfermeiros. Prescindo voluntariamente da minha saúde. Fumar torna-se um hábito, mas no início, quando começamos a fumar, é um gesto de protesto. Contra todos, contra a professora, contra os nossos pais". E continuou.

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