Jogging de Lágrimas

A partir da morte do filho, Nanni filma-se como um receptáculo de toda a dor do mundo, masoquista e auto-punitivo. Compraz-se na contemplação do seu sofrimento, como se não pudesse desperdiçar a oportunidade de "sentir".

Este é um Moretti diferente do habitual, eis o que já toda a gente sabe mesmo antes de ver o filme - a Palma de Ouro de Cannes 2001. Antes de ver o filme também já se sabe a "história": há uma família feliz (Moretti é o pai, Laura Morante a mãe, e têm dois filhos, um rapaz e uma rapariga, adolescentes) que um dia, abruptamente, o deixa de ser, quando o filho morre num acidente.

Os efeitos do choque, a dor, o trabalho do luto, passam então a ocupar o centro da atenção do filme, à medida que a ex-família feliz atravessa um processo de aparente desagregação que mais não é do que o necessário reajuste, rumo a uma recomposição que não está ganha - longe disso - à partida.

Mas pôr as coisas assim ainda é simplificá-las. "O Quarto do Filho" deixa-se ver de forma linear (a estrutura narrativa, com a morte do filho a meio, organiza-se num "antes" e num "depois") mas tem várias camadas; possui uma "mise en scène" rigorosa e uma montagem seca (aparentemente "objectivas") mas deixa várias pulgas atrás da orelha quanto ao âmbito das intenções de Moretti, quanto ao(s) sítio(s) a que ele quer, efectivamente, chegar.

a casa e o mundo. Podemos começar pela questão de este ser um Moretti "diferente". É-o, não há dúvidas. Mas há alguns "mas". Por exemplo, na descrição da família, que vive naquela placidez pequeno-burguesa que a isola do mundo, numa bolsa de auto-satisfação (e veja-se o primeiro plano com a personagem de Moretti dentro de casa). Esse isolamento, aliás, é reforçado de maneira que não pode ser casual, porque releva de uma opção de "mise-en-scène": a personagem de Moretti é um psicanalista, tem o seu consultório montado em casa, mas (o filme mostra-o em plano-sequência) para se chegar ao consultório é preciso atravessar várias portas, barreiras colocadas entre a casa e o mundo.

O mundo entra no consultório pelos pacientes de Moretti (uns casos mais graves do que outros) e esse é o único sinal de que "nem tudo vai bem" lá fora - mas nada disso chega "lá dentro", tudo permanece intocável, numa ordem perfeita de harmonia familia exemplar. Um subtexto sócio-político que aproximaria "O Quarto do Filho" das preocupações habituais de Moretti? Um princípio, pelo menos, uma sombra. O certo é que este resguardo do mundo não pode durar eternamente, porque um dia o mundo vai acabar por entrar dentro de casa, da maneira mais violenta possível.

Ao mesmo tempo, "O Quarto do Filho" tem qualquer coisa de pesadelo. Sabemos que Moretti (ele contou-o em filme, "Abril") foi pai há pouco tempo, e esse é o único dado que permite uma leve projecção dele na sua personagem no filme. "O Quarto do Filho" nasce de algum fantasma gerado pela paternidade? É difícil de dizer; agora que Moretti se parece aproximar desta história com o mesmo deleite mórbido com que às vezes nos entregamos ao rememoriar dos pormenores mais horrorosos do pesadelo que nos estragou a noite anterior, eis o que é difícil de negar. E há uma cena-chave: o momento, antecedente do velório, em que os funcionários da agência funerária selam o caixão do filho, tarefa seguida quase "documentalmente" em detalhe visual e sonoro. E o ruído dos berbequins (ou lá o que é) passa para o plano seguinte (Moretti sentado à mesa das refeições familiares), como marca doravante indelével de uma assombração, e como sinal do fim da inexpugnabilidade do refúgio familiar.

masoquista. Cenas como essa conduzem "O Quarto do Filho" para terrenos próximos de outro registo. E se não fosse tanto um filme sobre a dor, mas um filme obcecado com a ideia da dor, disposto a vivê-la de maneira quase masoquista? É importante, aí, a figura de Moretti e a sua auto-encenação. Mesmo interpretando uma personagem com quem, superficialmente, pouca identificação é possível (não é ele nem o seu alter ego Michele Apicella), o cineasta-actor continua a oferecer-se o centro do filme, como se ainda nestas circunstâncias o seu narcisismo tivesse que se cumprir - e isso é fácil de medir pelo facto de nenhuma outra personagem (nem a mãe, nem os filhos) se autonomizar: existem na medida em que existem com a personagem de Moretti, a câmara só se interessa por elas porque está lá a personagem dele. E a partir da morte do filho Moretti filma-se como um receptáculo de toda a dor do mundo, masoquista e auto-punitivo. Passa em revista os acontecimentos que precederam o drama; mortifica-se inventando hipóteses que tivessem alterado o desfecho (género "e se naquele dia eu tivesse feito isto ou aquilo"?); incorpora a culpa (no dia fatal em vez de ir fazer "jogging" com o filho foi atender um paciente em crise). Em resumo, compraz-se na contemplação do seu sofrimento, como se não pudesse desperdiçar a oportunidade de "sentir" - num reverso da existência anestesiada e "um pouco fastidiosa" (palavras da personagem) que tinha anteriormente.

Dir-se-á que tudo isto faz parte do trabalho do luto e da coexistência com a dor, e faz. Mas o modo como o Moretti-realizador gere a relação com o Moretti-actor exponencia o processo, faz aparecer uma espécie de prazer masoquista: uma redescoberta de sentimentos e emoções, uma reabertura ao mundo.

De resto, essa reabertura existe e é claramente indiciada numa sequência. É quando Moretti vai à discoteca comprar um disco "para o filho", porque agora que ele morreu sente necessidade de o conhecer melhor. Pede ao empregado da loja que escolha um disco de que o filho gostasse (Moretti só ouvia música italiana) e descobre uma canção de Brian Eno ("By this River") de que gosta tanto que até será a canção escolhida pelo Moretti-realizador para acompanhar o genérico final. É uma espécie de reparação da ausência ("estou a ouvir a música que ele ouvia"), a que se segue a descoberta da vida afectiva do filho e o aparecimento de uma efémera namorada. O filme tem a inteligência de fazer com que a personagem da namorada seja refractária à tentativa de "adopção" por parte da família, e até já tenha aparentemente arranjado outro namorado. Mas é a peça que faltava para pôr a família outra vez a andar, para fora do remoínho da dor. E é por essa personagem que se constrói a sequência final, onde se volta a sentir um imaginário onírico (a noite, uma viagem nocturna) que serve de metáfora para o trabalho de superação da dor: a viagem é longa e escura, mas é preciso seguir em frente e resistir à tentação do adormecimento, todos têm que se ajudar mutuamente a permanecer acordados. Depois, acaba a noite, e a estrada foi dar a uma praia. Talvez não voltem a sorrir como sorriam antes, mas há sol, outra vez.

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