As contradições do príncipe

Luchino Visconti regressa aos ecrãs portugueses por obra e graça do Porto 2001: a partir de segunda-feira, o Rivoli oferece uma retrospectiva integral de um cineasta injustamente esquecido. Resgatando a contradição viscontiana essencial, a de tentar conciliar os inconciliáveis.

Depois da grande retrospectiva da Gulbenkian, nos finais da década de 70, pouco depois da morte do cineasta, foi-se fazendo um progressivo (e incompreensível) silêncio sobre a obra de Luchino Visconti. "Morte em Veneza" foi reposto em cópia restaurada, um pouco por toda a parte - em Portugal, silêncio. O mercado português de vídeo (e agora de DVD) ignorou-o quase sempre. É verdade que a programação de cinema da Lisboa 94, no Tivoli, abriu com uma cópia belíssima de "O Leopardo", que o Presidente da República escolheu o mesmo filme para a rubrica televisiva, "O Filme da Minha Vida", que a Atalanta repôs há uns anos "Sentimento", mas perdeu-se no grande público a noção da importância de Visconti, no contexto da cultura (e não apenas em termos de cinema) europeia.Oriundo da mais alta aristocracia italiana, descendente directo da família Sforza, governante de Milão, durante séculos, "compagnon de route" do Partido Comunista Italiano, Visconti começou como assistente de realização de Jean Renoir em "Une Partie de Campagne" e "Les Bas Fonds", para além dos trabalhos de preparação de "La Tosca" que viria a ser acabado pelo medíocre Karl Koch, depois da emigração de Renoir para os Estados Unidos.A ilusão do neo-realismo. Eram os tempos da aprendizagem e da exposição às contradições da Frente Popular, a determinar um modo particular de resistência aos labirintos do fascismo mussoliniano. Assim aparece "Ossessione" (1943), estranhíssima adaptação de um "roman noir" americano, "O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes", centrado no fascínio pela fotogenia e pela carnalidade de Massimo Girotti e apresentando em filigrana muitos dos temas maiores viscontianos: a homossexualidade (a relação ambígua do protagonista com o Espanhol), a ópera (fabulosa sequência do concurso de amadores, com a romanza de "La Traviatta"), o confronto entre o romanesco e o político. E, no entanto, serviu sobretudo de bandeira de intervenção, primeiro filme a propósito do qual se usou o conceito de neo-realismo.Em 1948, aparecia novo grande fresco, "La Terra Trema", proibido pela censura em Portugal e incensado pela crítica italiana (e não só) como obra-prima neo-realista, sobre a odisseia dos pescadores, apogeu de um cinema sem actores profissionais, em dialecto siciliano, filmado em cenários naturais e com som directo. Só que esta visão excessivamente politizada pode resultar enganadora: o filme adaptava a grande saga familiar de Giovanni Verga, "I Malavoglia" e inscrevia-se já no contexto do verismo literário e operático."Belissima" (1951) cumpria o seu papel de olhar crítico sobre o mundo do cinema, consentâneo com o que a crítica empenhada e próxima das propostas neo-realistas (com Guido Aristarco por papa) defendia. No fundo, era acima de tudo um veículo poderoso para Anna Magnani e para as suas idiossincracias. Dois anos depois, no episódio de "Nós, as Mulheres" (1953), Visconti clarificava esta fixação na actriz, fazendo da rábula sobre o cãozinho de regaço um extraordinário divertimento menor.A explosão do sentimento. Era o tempo do teatro e da relação complexa com as divas (Rina Morelli vai permanecer como secundária nos seus filmes, depois de ter sido presença assídua, como protagonista, nas suas encenações teatrais, ao lado do jovem Mastroianni e de Paolo Stoppa): Visconti espaçava a sua aventura fílmica com encenações de Tennessee Williams ("O Eléctrico Chamado Desejo", por exemplo) e Tchekhov, a caminho do encontro fulcral com Maria Callas, na "Traviatta" da Scala ou na ressurreição do belcantismo esquecido da "Anna Bolena" de Donizetti.Não espantou, por isso, que "Sentimento/ Senso" (1954) viesse fazer explodir todas as ilusões dos que pretendiam acorrentar Visconti a uma visão estreitamente neo-realista. Em Portugal, como em Itália dividiu as águas da crítica, com a agravante de os cortes impostos pela censura terem reduzido o grande fresco histórico do Rissorgimento a uma história de traição amorosa. Vimo-lo quase clandestinamente, muito antes da idade requerida pela classificação etária então vigente, numa sessão do Cineclube Imagem e ficou a marca imperecível de uma grande ópera verdiana construída sobre uma sinfonia de Bruckner, embora a abertura encenasse a histórica representação de "Il Trovatore". O tenor cantava "Di Quella Pira" e o drama passava para a plateia e para o camarote da condessa Livia Serpieri em vibrantes ondas de cor irreal. Ficou também a famosa deixa, "Il Trovatore non è piú una noveltá per me": Visconti deixara de ser uma novidade para nós, tornara-se parte da família, referência obrigatória de gosto, o esteta de todas as decadências, o lugar de contradição entre a permanência de uma cultura do passado e uma intervenção de esquerda.O onirismo de "As Noites Brancas" (1957), Dostóievski revisitado "à la Tchekhov", com Maria Schell e Mastroianni, remetia para um cenário de cartão e um mundo de sombras e fumos, enquanto "Rocco e os Seus Irmãos" (1960) voltava ao mundo das classes trabalhadoras, mas com o aparato da grande ópera e uma noção perfeita dos limites do melodramático. Entravam pelo universo viscontiano adentro Claudia Cardinale e Alain Delon, figuras doravante indissociáveis da sua estética.Regressavam ambos em "O Leopardo" (1963), ao lado da mais estranha das imposições (para "Senso", Visconti queria Marlon Brando e deram-lhe Farley Granger), o acrobático Burt Lancaster para o seminal Príncipe de Salinas, personagem de Lampedusa, que Visconti viria a transformar em seu alter-ego. Depois da rejeição inicial, Lancaster acabou por colar-se à aristocrática figura e por criar uma cumplicidade duradoura com o realizador: ambos eram escorpiões do mesmo dia, 2 de Novembro. É Lancaster quem conta o famoso episódio das camisas de seda, originais preciosos da época em que "O Leopardo" decorria, escondidas dos olhos do público numa gaveta. Interrogado sobre o preciosismo da reconstituição, Visconti teria respondido que o simples contacto com os objectos de época obrigava a vestir a pele da personagem.Cínico retrato da adaptação de uma classe dominante a todas as mudanças ("É preciso que algo mude para que tudo fique na mesma"), "O Leopardo" iniciava um novo período de grande fulgor épico. Como em "Sentimento" construía-se o romanesco nos intervalos da História. Em Portugal, distribuía-se a cópia inglesa, supervisionada por Lancaster, com violentos cortes e problemas de resolução de cor. A travessia do deserto. Apesar dos entusiasmos viscontianos militantes, uma certa "inteligentsia" sobrevivente do neo-realismo abria fogo sobre as possíveis "traições de classe". As intermitentes narrativas de ambiente contemporâneo, como "Il lavoro", episódio de "Boccaccio 70" (estreia em Visconti de Romy Schneider), ou "Vaghe Stelle dell'Orsa" - que, apesar de ter tido o título português de "Sandra", nunca estreou comercialmente entre nós - não ajudaram muito. O incesto de "Sandra" ou a prostituição da alta sociedade de "Il Lavoro" trouxeram a incompreensão de quem continuava a contar Visconti como o cineasta da pureza da luta de classes. E, no entanto, o cineasta não abandonara uma cáustica visão da Itália da reconstrução do pós-guerra, apenas deslocara o âmbito da amostragem para mundos que conhecia por dentro e por fora.O falhanço, em 1967, de "O Estrangeiro" (o pior filme de Visconti), em parte devido às limitações postas à adaptação pelos herdeiros dos direitos do romance de Camus, o indiferente episódio de Silvana Mangano em "Le Streghe" ("A Feiticeira Queimada Viva") e o contraditório "Os Malditos" (1967) fechavam em queda a década que abrira com o esplendor de "Rocco" e de "O Leopardo".O traidor a um cinema de "operários e camponeses" passou então a ser vilipendiado como académico: a gigantesca ópera wagneriana de "Os Malditos" ("O Crepúsculo dos Deuses" no título original) "descobria" Helmut Berger e incorporava um "kitsch" de luxo no historicismo maníaco do cineasta.A relação com Berger, dentro e fora do ecrã, prolongava-se em "Luís da Baviera" (1973). Entre nós, o filme passou na saudosa sala do Império, enquanto a salinha do Estúdio, no mesmo edifício, exibia "Requiem por um Rei Virgem", variação de Syberberg sobre o mesmo tema. Para elogiar o filme alemão, a crítica sentiu a necessidade de denegrir o "estafado academismo" do velho aristocrata italiano.Quando estreou "A Morte em Veneza" (1970), incompreendida metamorfose fílmica de Thomas Mann, usando a música de Mahler, como antes vampirizara Bruckner, em "Senso", passara, de todo, o estado de graça: falou-se de cedências comerciais, enfatizou-se demasiado as hipóteses de política (homo)sexual, atacaram-se os obcecantes "zooms" como degenerescência estilística. Vimos o filme, pela primeira vez, no Porto, no Estúdio de Costa Cabral, perante um público indiferente, quando não agressivo ("Ai, que o gajo é 'maricas'", gritou, a certa altura, uma voz assustada).E eis senão quando, mesmo os que haviam contribuído para este coro de vozes negativas desatam a gritar obra-prima, quando estreia "O Intruso" (1976), adaptado de D' Annunzio, com Giancarlo Giannini e o Girotti do primeiro filme em papel secundário, a fechar o ciclo.Conciliar o inconciliável. À beira da morte, Visconti ter-se-ia resgatado da queda nos abismos com o genial opus final, como por milagre. Por arrasto, "Violência e Paixão" (1974) foi recebido como devia, como o grande testamento artístico do mestre: de novo Lancaster como o "alter-ego", Berger como o "amante infiel", vítima de estranho atentado, a Mangano em possessiva matrona.O professor do filme, coleccionador de quadros de género, vocaliza a contradição viscontiana essencial, a de tentar conciliar o inconciliável: a estética passadista e um olhar progressista sobre o presente. Hoje, também "Morte em Veneza" ou Ludwig", numa remontagem de todo o material que havia sido cortado por exigências da distribuição comercial, tiveram direito a recuperação. Vemos "L'Innocente" como admirável resultado de um percurso interiorizado da decadência e não como um milagre avulso.Porém, Visconti não ascendeu ainda ao lugar que merece, ao lado de Welles, Ophuls, Sirk, Lang ou Hawks, de mestre incontestado da arte das imagens, o apogeu da cultura de oitocentos no princípio do estertor do século XX. Nunca realizou o sonho de vida inteira de filmar a "Recherche" de Proust, mas atingiu a síntese possível de gosto na relação entre o literário, o operático, o pictórico e o fílmico.Oxalá esta retrospectiva no Porto ajude a reparar a injustiça, de que ainda não nos resgatámos completamente, e recoloque o seu nome no mapa obrigatório do cinema, na difícil charneira entre o clássico e o contemporâneo.

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