O fim da Inquisição em Portugal foi há 180 anos

"Fábrica de cristãos-novos", assim designou António José Saraiva o Tribunal do Santo Ofício, ou simplesmente a Inquisição, na sua obra de referência, "Inquisição e Cristãos-Novos". A obra teve a sua primeira edição em 1969 e animou uma polémica que se prolongou até hoje, mesmo se o próprio autor, na 5º edição, reconhece em parte as razões de I. S. Révah, seu contraditor (Ed. Estampa, 1985). A tese de Saraiva diz que o Santo Ofício foi um tribunal político que se auto-reproduzia criando suspeitos de judaísmo. Os acusados, depois de passarem pelas seus cárceres, transformavam-se em verdadeiros judeus. Em tranquila consciência os inquisidores podiam então relaxá-los ao poder secular, para serem condenados à fogueira num auto-da-fé que contava com a presença dos mais altos dignitários da nação, incluindo o rei. Para justificar a sua existência a instituição necessitava de heréticos e os cristãos-novos eram os mais fáceis de fabricar. Além da forte tradição judaizante que existira em Portugal até ao reinado de D. João III, os "cristãos-novos" ofereciam a vantagem de ser praticamente inofensivos, isto é: não tinham, como os protestantes, uma potência europeia que ameaçasse o reino caso este entrasse pela via da ameaça física dos seus correligionários.A Inquisição portuguesa, ao invés da sua congénere espanhola, pouco se interessou pelos casos de bruxaria e sodomia. Mesmo se os não descurava, preferia concentrar a sua atenção nos "cristãos-novos", já que estes, dedicando-se ao comércio dispunham de bens que podiam ser confiscados, aos invés das "mulheres de virtude", geralmente gente indigente, com problemas de sanidade mental.Vários foram os regulamento da Inquisição, mas todos eles observavam o princípio de confisco automático dos bens de todos os suspeitos, sob a ressalva de os mesmos lhes virem a ser entregues, se viesse a provar-se nos interrogatórios estarem inocentes. Esta prática proporcionava aos inquisidores uma fonte de rendimento que supria os emolumentos pelos serviços prestados ao reino em nome da fé, pagamento que os monarcas, mesmo os mais fidelíssimos à Igreja católica, faziam com relutância.Daí, como nota Elias Lipiner, que certas corruptelas tenham entrado na linguagem corrente, exprimindo ironia, desprezo e temor pelo poder dos juízes do Santo Ofício. Era o caso de "visco", que, de engodo para a pesca, passou a designar o "Fisco" do Santo Ofício, "dada a desonestidade com que os Inquisidores manejavam os bens confiscados aos cristãos-novos condenados como hereges" ("Terror e Linguagem", Ed. Círculo dos Leitores).O Tribunal do Santo Ofício foi instalado em Portugal por bula de 23 de Maio de 1536, depois de grande insistência junto do papa Paulo III por parte de D. João III, dito o "Piedoso", que no final do seu reinado se tornou permeável às influências da mulher e do irmão, cardeal D. Henrique, defensores da união dinástica de Portugal e Castela, o império que iria impor a fé católica a todo o mundo. D Henrique, que acabou por suceder ao irmão na Coroa, foi, de facto, o primeiro Inquisidor do reino. A fábrica da morte em nome da fé ateou-se pela primeira vez em Lisboa em 26 de Setembro de 1540 e só veio a apagar-se no reinado de D. José I, por decreto de 1768. Ele pôs cobro à distinção entre "cristão-novo" e "cristão-velho" e obrigou as linhagens de "sangue puro" a misturarem-se com as demais, sob pena do confisco dos bens. "O problema de quase três séculos" - escreveu Lúcio de Azevedo - "tinha-o, finalmente, solvido a mão dura de Pombal" ("História dos Cristãos-Novos Portugueses", Ed. Clássica Editora).O tribunal não fechou propriamente as portas, apenas deixou de ser eminentemente eclesiástico para se colocar às ordens políticas do marquês de Pombal, que não teve pejo de recorrer a ele para esmagar a conspiração dos Távoras. O fim jurídico e efectivo da Inquisição esteve agendado para a sessão de 8 de Fevereiro de 1821 da assembleia constituinte (saída da Revolução liberal de 1820), por iniciativa do deputado Simões Margiocchi. Talvez por não se tratar de matéria polémica e ter obtido a anuência do próprio inquisidor-geral de então, que viu na extinção a necessária adaptação da sociedade portuguesa às "luzes do século", a decisão foi sendo adiada. Até que no dia 31 de Março foi finalmente votada, tendo sido publicada no jornal oficial de 5 de Abril de 1821.O principal tribunal do Santo Ofício instalou-se neste edifício, em Lisboa, designado por Estaus, transformado no século XIX, para dar lugar ao actual Teatro Nacional de D. Maria II. O edifício, que data do século XV, foi originalmente residência dos regentes de D. Afonso V (1432-1481) e entrou para a história pela mão de D. Manuel, quando em Março de 1497 este iludiu os judeus, prometendo-lhes guarida nos paços reais, até que estivessem aparelhadas as naus que os levariam para fora do país, de acordo com o seu édito de expulsão de Dezembro de 1496. Eles acreditaram na palavra real e foram, nas palavras de Samuel Usque, cronista judeu contemporâneo, para os Estaus "como ovelhas à degola". Ali fechados, D. Manuel ordenou a sua conversão forçada. Feitos assim cristãos, decidiu o rei que eles já não eram precisavam de abandonar o reino, nem ele de aparelhar as naus.

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