Dentro do Aquário

De alguma maneira, "Peixe Lua" e uma saga familiar, cheia de sub-entendidos e mal-entendidos, de contas por ajustar e de emoções por resolver. O meio é o de uma certa aristocracia rural (estatuto herdado ou estatuto conquistado, é mais ou menos irrelevante) onde há um pai veterinário com ambições políticas (Luis Miguel Cintra), a recordação de uma mãe morta há anos, e um tio avô rebelde (Francisco Rabal), que foi para Espanha ser toureiro e agora está moribundo. Depois, há os filhos (Beatriz Batarda, Ricardo Aibéo e Afonso Melo) e o amigo pobre que em criança brincava com eles (Marcello Urgeghe).

A bem dizer, tudo o que verdadeiramente acontece no presente de "Peixe Lua" já aconteceu - e o que o filme mostra, num novelo de "flash backs" que satura o presente de passado, é o modo como as personagens reagem, resolvem e se adaptam a essa saturação de passado (mágoas, alegrias, relações apenas semi-explicadas) no presente.

Tudo está, por isso, suspenso: a personagem de Batarda hesita em seguir avante com o casamento previsto para breve, hesitação que se materializa num barco-empecilho chamado Zéfiro e na viagem necessária para o devolver ao noivo que o enviara como presente de casamento; essa viagem, que põe em marcha o processo de reencontros e reminiscências, rima com a doença do Tio Nini, também ele ligado a uma máquina, "hesitante" entre a morte e a vida.

Apesar do impasse em que instala a sua narrativa, "Peixe Lua" é um filme vertiginoso. Tudo se passa a enorme velocidade - as cenas, quase todas muito curtas, são intensamente decoupadas; as personagens, inúmeras, entram e saiem de cena sem aviso prévio; de um plano a outro pode-se cruzar o espaço, ou pode-se cruzar o tempo (inclusivamente, pode-se penetrar num tempo mítico, que se inscreve no filme a partir de fragmentos da representação de uma peça de Garcia Lorca). Mas é como se esta grelha caleidoscópica, para além de ser a maneira de abarcar toda a galeria de personagens e de sugerir ("Peixe Lua" sugere sempre mais do que o que explica) as relações mais ou menos subterrâneas entre elas (ou o modo como o "sangue" corre dentro daquela família), amordacasse as personagens e as aprisionasse dentro dela.

O peixe lua está dentro de um aquário: as personagens não têm como escapar nem ao tempo, nem ao espaco, nem à família, nem sequer umas às outras - em última análise, a vertigem de "Peixe Lua" vem daí, do facto de todas as personagens estarem suspensas sobre um abismo delas próprias. Precisam de ter a certeza de que não estão a dar um passo em falso, mas como ter essa certeza?

Tudo isto se alimenta de um imaginário do Sul (as paisagens do Ribatejo, do Alentejo, da Andaluzia) cuja sensualidade é reforçada pelo assinalável sentido plástico com que é filmado (volte-se a frisar a bela fotografia de Edgar Moura). E, finalmente, assinale-se também que algumas das coisas mais compensadoras de "Peixe Lua" estão naqueles momentos em que a espiral narrativa se parece, também ela, suspender, como se estivesse a retemperar forças e se instalasse num "aqui e agora" subita e temporariamente liberto: por todos os exemplos, falamos daquela cena do jantar no restaurante, em que a personagem de Isabel Ruth (mãe da de Marcello Urgeghe) se levanta para dançar, à espera que o filho a venha acompanhar.

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