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Histórias de Vitória

Celebra-se amanhã o centenário da morte da rainha Vitória. É a única mulher que deu o nome a um século. Os homens são Péricles, Augusto e Luís XIV. Mais do que autora de uma obra, Vitória representou uma época e presidiu, durante 64 anos, ao maior império de sempre. O seu nome ficou também associado à ideia de puritanismo, repressão e intolerância. A sua biografia encerra, no entanto, algumas surpresas.

Vitória é filha de Eduardo, duque de Kent, e da princesa Vitória Maria Luísa de Saxe-Coburgo. Veio ao mundo numa família de má fama, os Hanôver, e por contingentes razões. Jorge III (1738-1820) enlouquece (definitivamente) em 1811, deixando 12 filhos. Sucede-lhe como regente, e depois como monarca, o primogénito, Jorge IV (1762-1830), um "debochado obeso", protagonista de muitos escândalos, inclusive o de acusar a rainha de adultério perante os Comuns. A morte, em 1817, da sua única filha e herdeira, Carlota, faz entrar os irmãos na linha de sucessão. O segundo, Frederico, é velho e não tem filhos. Guilherme (o futuro Guilherme IV) também perde as duas filhas, em 1819 e 1822. O irmão seguinte, Eduardo, duque de Kent, 50 anos, não é casado, vivendo placidamente com a senhora Julie de Saint Laurent. A alternativa é um pesadelo: Ernesto Augusto, duque de Cumberland (futuro rei de Hanôver), arqui-reaccionário e besta negra dos constitucionalistas, é suspeito dos piores crimes, entre eles "homicídio e actos incestuosos", e casado com uma mulher de ainda pior fama. Kent cede às pressões, abandona a desesperada Saint Laurent e casa-se com uma viúva alemã, a princesa Vitória de Saxe-Coburgo. DrinaA criança nasce a 24 de Maio de 1819. Kent, com sonhos imperiais, quer chamar-lhe Isabel. Mas o regente Jorge preside ao baptismo e é cortante: o padrinho é o imperador Alexandre (da Rússia), ela chamar-se-á Alexandrina. Kent tenta o compromisso, Alexandrina-Isabel. O arcebispo de Cantuária impacienta-se. O regente resolve: "Dá-lhe o nome da mãe." Assim foi: Alexandrina Vitória. "Drina" em toda a infância.Kent morre um ano depois. Drina é educada por uma mãe obsessiva, que lhe não permite que fique sozinha por um só momento. Dorme sempre no quarto materno. Serve-lhe de mentor seu tio Leopoldo (viúvo de Carlota e futuro rei da Bélgica). Foi preceptora a baronesa alemã Luísa de Lehzen. O alemão foi a língua materna, o inglês a segunda língua de infância, o francês a língua adquirida. Na sua correspondência mistura as três. Disseram que o seu inglês tinha uma sintaxe bizarra. Aos oito anos, torna-se herdeira do trono. Aos 11, a mãe explica-lhe que irá ser rainha. Responde: "Serei sábia." Conta no seu "Diário" que, depois, foi para um canto chorar. Até à ascensão ao trono, Drina é a esperança dos "liberais" (este termo ainda não era usado). "A princesa Vitória simbolizou doravante a vitória da burguesia triunfante", escreveu em 1921 o seu biógrafo Lytton Strachey. Terça-feira, 20 de Junho de 1837, Vitória é acordada às seis da manhã para lhe comunicarem que seu tio Guilherme IV morrera e era rainha. No dia seguinte, presidiu ao primeiro conselho de ministros. Conta Lord Greville nas suas "Memórias" que ela foi "extraordinária". "Parecia impressionada, mas não intimidada." Leu um discurso sem hesitações. Só quando os tios, os duques reais, se lhe ajoelharam aos pés, lhe juraram fidelidade e beijaram a mão, "a vi corar, como se se apercebesse do contraste entre as relações oficiais e as familiares, e foi a única nota de emoção que manifestou." Comunica a Melbourne que o conserva como primeiro-ministro e escolhe o nome de Vitória. No fim, pede à mãe o "primeiro favor como rainha: deixe-me ficar só durante uma hora." Ao fim dessa hora, manda que lhe mudem a cama para um quarto independente. A 10 de Fevereiro de 1840, a multidão celebra em Londres o casamento da rainha com Alberto de Saxe-Coburgo e Gotha. Alberto é primo direito de Vitória e três meses mais novo. Nasceram com a mesma parteira e cedo foram destinados ao casamento. "Era um bonito rapaz, inteligente e cheio de vivacidade". Mas a decisão não é automática. Alberto visita Vitória, em Londres, em Julho de 1839. Ela declara então a Melbourne que não tem pressa em casar e diz o mesmo a seu tio Leopoldo, então já rei dos belgas. Em Outubro, muda de opinião, diz-se "segura de amar" Alberto e confessa a Leopoldo que ele "é muito sedutor". As primeiras duas décadas do reinado são na prática o reinado de Vitória e Alberto. Não que ela abdique das suas prerrogativas. Mas ele ensina-a a reinar num quadro constitucional, moderando-lhe o "humor tirânico". Muitas das "intromissões" de Vitória na política são feitas através do príncipe, de modo a salvaguardar conflitos entre os ministros e a Coroa. É um homem moderno, gosta de Dickens e aprecia Darwin. É o inspirador de muitas das iniciativas que marcam a época, como a Grande Exposição mundial de 1851. "Tenho o sentimento de que sem ele não poderia existir", confidencia Vitória a Leopoldo em 1848. Ela tornara-se "loucamente amorosa", diz um biógrafo.Alberto morre em 1861. Vitória faz um luto brutal, afasta-se durante anos da vida pública, torna-se uma reclusa e concentra-se no "culto do herói morto". Um culto mórbido, que levará até ao fim da vida. Tiveram nove filhos. A primogénita, a princesa real Vicky (Victoria), futura imperatriz alemã, nasce em 1840. Um ano depois, é a vez de Alberto Eduardo, príncipe de Gales, que reinará sob o nome de Eduardo VII. Seguem-se Alice, Alfredo, Helena, Luísa, Beatriz, Artur e Leopoldo (1853). Vitória beteu-se pelo parto sem dor. Usou sucessivamente o ópio, o éter, o clorofórmio. Passou por cima das objecções da maioria do corpo médico, que advertia contra os riscos do clorofórmio. Em 1860, são 30 mil as mulheres que seguem o seu exemplo. Tem relações privilegiadas com alguns filhos, más com outros. A pior é com Alberto Eduardo, que ela considera um inútil e manterá afastado dos assuntos públicos até à morte. O príncipe de Gales refugia-se na boémia - quando sobe ao trono, rejeita o nome de Alberto, assume o de Eduardo e revela inesperadas qualidades políticas; e, nos palácios reais, retira das paredes e jardins a maioria dos ícones da mãe. Em 63 anos de reinado vitoriano, a Inglaterra teve um corpo notável de primeiros-ministros, em que se destacam Melbourne, Peel, Palmerston, Disraeli, Gladstone ou Salisbury. Melbourne, que tem 58 anos quando Vitória sobe ao trono, mantém sobre ela um grande ascendente, que ela lhe retribui com estranha cumplicidade: continua a aconselhar-se com ele depois de ele deixar o cargo, o que cria atritos com os sucessores. Mas os dois políticos do seu reinado são os rivais Disraeli, o fundador do moderno conservadorismo, e Gladstone, líder "whig", paladino das grandes reformas. Com Gladstone dá-se mal. Ele trata-a respeitosamente, "como uma instituição". Disraeli sabe adulá-la, como rainha e mulher, tornando-se o seu favorito: o "querido Dizzy", como o trata na correspondência privada. Por vezes, Vitória manda-lhe as suas flores preferidas, primaveras, colhidas pelas mãos reais nos jardins de Osborne (ilha de Wight). E nobilita-o: fá-lo conde de Beaconsfield. Benjamin Disraeli (1804-81) pertence a uma família judaica, de origem italiana, convertida ao anglicanismo. Na juventude é um "dandy". Para pagar as dívidas, torna-se escritor (com sucesso) e casa-se com uma mulher rica. O seu segundo governo (1874-80) é considerado "a quintessência da era vitoriana". Foi também o autor da transferência da Índia para a administração da Coroa, com a consequente elevação de Vitória a imperatriz. Como são as relações de Vitória com os governos e parlamento? Apesar de um pendor autoritário, ela soube resignar-se, por entre muitos conflitos, a aceitar a limitação do seu papel à representação do império, presidindo à "evolução silenciosa da Constituição" (Roland Marx). Constituição que no seu reinado passou da "monarquia pessoal limitada pelo poder de uma aristocracia hereditária para um sistema democrático do tipo mais liberal [...] e sem rupturas violentas" - sintetiza o "Times" no editorial de 1 Janeiro de 1901. No plano internacional, Victoria representa um papel importantíssimo, falando e escrevendo em nome dos interesses britânicos à sua numerosa parentela, de Berlim a Moscovo.Entre 31 de Agosto e 9 de Novembro de 1888, seis prostitutas apareceram assassinadas e esventradas no East End de Londres. O presumível autor, "Jack o Estripador" (Jack the Ripper), enviou aos jornais e à polícia cartas reivindicando os crimes. Nunca foi identificado. Mas ficou como o exemplo dos medos que dominam a sociedade vitoriana. Ao temor da revolta das "classes perigosas", somam-se o medo do crime, os fantasmas do vício e da noite nas cidades. Vitória intrometeu-se pessoalmente na investigação, pressionando o ministro do Interior, criticando a polícia, fazendo de detective amadora. Em carta ao primeiro-ministro Salisbury, pergunta-lhe: "Inquiriram junto dos barcos que transportam gado e a bordo dos navios de passageiros? Inquiriram junto dos homens que vivem sozinhos em quartos? As roupas do assassino devem estar impregnadas de sangue e conservadas em qualquer parte."A seguir a Alberto, John Brown, escocês, guarda de caça, terá sido o homem mais importante na vida de Vitória. Um jornal satírico chegou a tratar a rainha viúva por "Mrs. Brown". Colocado ao seu serviço por Alberto, Brown torna-se o companheiro inseparável. Sempre de "kilt" e com o "tartan" escocês, serviu-a durante vinte anos, como uma espécie de escudeiro. Foi por ela promovido a cavaleiro, para poder dormir no palácio. Era o único homem que lhe dava ordens e a tratava por "mulher" (wuman). Se necessário, era insolente para os grandes do reino. Nos passeios de montanha, quando ela se cansava, levava-a ao colo. Dormia na antecâmara do quarto real. Acompanhava-a sempre, inclusive nas viagens ao estrangeiro. Mas sobretudo foi o confidente absoluto, "testemunho da sua imensa solidão" (R. Marx). Quando morreu, em 1883, Vitória fez um luto quase tão pesado como por Alberto. Ergueu-lhe estátuas, afixou o seu retrato nos palácios, fomentou a publicação de livros de homenagem. Duas outras personagens ocuparão parcialmente o seu lugar: Mohammed Buxsh e Abdul Karim, dois jovens indianos muçulmanos. Sobretudo o belo e muito amado Karim, a quem tratava por "Munshi" (mestre). Os seus retratos foram afixados nas paredes de Windsor, por baixo do grande quadro de John Brown. Nenhum monarca, desde Isabel I, foi tão exaltado e tão adulado como Vitória. No entanto, observa Strachey, "se Vitória tivesse morrido em 1870, o mundo teria proclamado o insucesso do seu reinado". A construção do "ícone vitoriano" começa nos anos 80, quando ela se transforma de "viúva irritável em imperatriz matriarcal" (John McKenzie). 1887 é o ano do Jubileu de Ouro. 1897 será o Jubileu de Diamante. Walter Bagehot, fundador de "The Economist" e autor de "The English Constitution", escreve no seu jornal: "Todos sentem que a Rainha é qualquer coisa de único, qualquer coisa de extraordinário, qualquer coisa cuja posse o mundo nos inveja. E as multidões entusiasmam-se em a possuir. As longas jornadas, de uma extensão sem precedente, pertencem-lhe, mas ela pertence-nos a nós. Haverá algo de mais natural num tal período de consciência nacional sobredimensionada?"O jubileu abre um período em que Vitória se deleita com a popularidade e reencontra o gosto pela vida. Passa férias na Riviera francesa e goza os últimos prazeres. Os primeiros sintomas vêm a 15 de Janeiro de 1901. A 19, o seu estado é alarmante. Morre a 22, ao fim de quase 64 anos de reinado. Ao expirar, sussurra "Albert", o amado marido, ou "Bertie", o mal-amado filho Alberto Eduardo. Em qual deles pensou? As homenagens foram universais e, hoje ainda, de ocidente a oriente, o seu nome está gravado em monumentos e na toponímia de cidades.Resume Strachey: "Quando. dois dias antes, o público soube que ela ia morrer, um doloroso pasmo percorreu o país. Parecia que um acontecimento monstruoso vinha interromper o curso natural das coisas. A imensa maioria dos seus súbditos não se recordava duma época em que a rainha Vitória não reinasse sobre eles. Ela fazia parte da ordem normal do universo; parecia-lhes inadmissível perderem-na."

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