Mulheres pagam o preço da honra

No Paquistão, como noutros países islâmicos, os "crimes de honra" contra as mulheres são uma prática comum. Raramente condenada pela sociedade, raramente condenada pelos tribunais. Mulheres culpadas ou suspeitas de adultério ou sexo pré-marital são, pelos maridos, pais ou irmãos, apedrejadas, queimadas, desfiguradas. O horror por trás do véu que as "protege".

A cabeça de Zahida Perveen está embrulhada num véu branco de algodão, que ela ajusta repetida e mecanicamente. Mas quando se baixa para pegar na filha bebé o véu cai e revela a face de um dos mais terríveis males sociais do Paquistão - aquilo que é geralmente conhecido como crimes de "honra".Os olhos de Perveen são órbitas vazias de carne que não vê, os lóbulos das orelhas foram cortados e o nariz é uma zona côncava de osso avermelhado. Há dezasseis meses, o marido, num acesso de fúria por causa de um alegado caso dela com um cunhado, amarrou-a de mãos e pés e cortou-a com uma navalha e com uma faca. Nessa altura estava grávida de três meses."Chegou a casa, vinha da mesquita, e acusou-me de ter mau carácter", murmura a pequena mulher de 32 anos enquanto espera à porta do tribunal por uma audiência. "Disse-lhe que não era verdade, mas não me acreditou. Apanhou-me e atou-me, e depois começou a cortar-me o rosto. Nunca disse nada, a não ser 'Esta é a tua última noite'".Perveen está desfigurada até um ponto extremo, mas o seu caso não tem nada de extraordinário, é até normal pelos padrões básicos. Milhares de mulheres e raparigas paquistanesas são esfaqueadas, queimadas ou mutiladas todos os anos pelos maridos, pais ou irmãos, se estes suspeitam de que elas fizeram cair a desonra sobre a família, por serem infiéis, tentarem obter o divórcio, fugirem com um namorado ou recusando casar com um homem escolhido pela família.Se a vítima morre, o crime torna-se um "assassínio de honra", um termo que acaba por simbolizar a ironia cruel de uma sociedade islâmica conservadora que apregoa a defesa da mulher mas que muitas vezes admite a violência selvagem sobre elas em nome da honra da família e dos homens.O problema dos "crimes de honra" no Paquistão, embora esteja longe de ser novo ou único, tem despertado nos últimos meses a atenção internacional, desde que Samia Sarwar, de 29 anos, foi morta a tiro no escritório de um conhecido activista dos direitos humanos. Os pais encomendaram o crime, porque ela tinha envergonhado a família ao procurar divorciar-se.Dirigentes políticos paquistaneses têm resistido a empreender uma acção para combater os "crimes de honra", mas em Maio o líder militar general Pervaiz Musharraf lançou uma campanha nacional em defesa dos direitos humanos e dedicou a estes crimes uma denúncia especial. "O Governo do Paquistão condena vigorosamente a prática dos chamados 'assassínios de honra'" - declarou Musharraf. "Actos destes não têm lugar na nossa religião ou lei. Matar em nome da honra é um assassínio, e será tratado como tal."Crimes destes acontecem em todo o mundo e em sociedades que seguem todas as fés: um marido ciumento nos Estados Unidos pode ser levado ao mesmo acto de fúria do que um no Paquistão - ou em Portugal. Mas estes ataques tendem a ser levados mais a sério pelas autoridades de países desenvolvidos, onde as mulheres têm mais consciência dos seus direitos.Mais ainda, pelo facto de os conceitos de honra masculina e de subserviência feminina estarem profundamente enraizados nas culturas tribais islâmicas e asiáticas, os "crimes de honra" acontecem há anos na Arábia Saudita, na Turquia, no Egipto e noutros países muçulmanos sem provocarem uma reacção de rejeição generalizada."O conceito de 'assassínio de honra' não existe na lei islâmica, mas a tradição conservadora é muito forte na nossa cultura. O Islão dá direitos às mulheres, mas a sociedade abafa-os", afirma Nayyar Shebana, advogada da Fundação Aurat, um grupo de defesa das mulheres em Islamabade, a capital paquistanesa.As estatísticas sobre "crimes de honra" não são nada exactas, mas a Comissão de Direitos Humanos do Paquistão, um organismo independente, revelou que em 1998 e 1999 mais de 850 mulheres foram mortas pelos maridos, pais ou outros familiares no Punjab, a província mais populosa do Paquistão. Em muitos casos, a mulher era suspeita de comportamento imoral, disse a comissão.Uma forma comum de violência doméstica contra as mulheres paquistanesas é através do fogo. Em 1998 e 1999, a comissão relatou mais de 560 casos de mulheres queimadas em casa no Punjab. Em 1998, quase metade das vítimas morreram. Só houve uma meia dúzia de prisões. A Associação para o Progresso das Mulheres, que assiste vítimas atacadas, identificou 3.560 mulheres que foram hospitalizadas depois de sofrerem agressões em casa com fogo, gasolina ou ácido entre 1994 e 1999."Lidamos com casos destes todos os dias, mas tenho assistido a muito poucas condenações", afirma Nahida Mahbooba Elahi, uma advogada e activista dos direitos das mulheres que representa vítimas de "crimes de honra". "Os homens dizem que a mulher não obedeceu às suas ordens, ou mantinha relações com outra pessoa. A polícia afirma muitas vezes que se trata de uma questão doméstica e recusa-se a investigar o caso. Alguns juízes até oferecem justificações e não consideram que tenha havido assassínio."Desde a polémica que rodeou o assassínio de Samia Sarwar vieram a público dezenas de outros casos, em parte devido à pressão de grupos de mulheres. Em entrevistas recentes, vítimas de agressões familiares descreveram os seguintes incidentes de violência doméstica extrema:- Perveen Aktar, de 37 anos, sofreu queimaduras graves em Setembro quando o marido, um vendedor de fruta de Rawalpindi, a sul da capital, lhe atirou ácido. Aktar, que ficou com marcas profundas no rosto, no peito e nas costas, disse que queria regressar à primeira mulher e que ela recusou. Ela conta que foi à polícia mas que ele subornou agentes e que estes não investigaram o caso.- Zarina, de 40 anos, fugiu de casa depois de o enteado, de 20 anos, ter morto a tiro a sua irmã mais nova; a rapariga queria casar com um namorado de que o enteado não gostava. Zarina conta que o marido se pôs ao lado do filho, lhe bateu e ameaçou matar a filha de dois anos quando Zarina pediu o divórcio. Zarina e a filha vivem escondidas.- Kousar Perveen, de 32 anos, mãe de quatro filhos, de Talagang, a quase 200 quilómetros de Islamabade, foi alegadamente espancada e queimada por familiares do marido, em Fevereiro. Morreu. A família dela diz que eles a tinham proibido de sair de casa, mesmo para visitar os pais doentes ou para ir ao casamento de um primo. Há duas pessoas presas a aguardar julgamento.Advogados e activistas dos direitos das mulheres afirmam que muitos casos nunca chegam a tribunal, que a polícia é facilmente subornada ou convencida pelas famílias dos homens a arquivar as queixas na gaveta dos "acidentes domésticos". Muitas vítimas, em especial jovens sem educação confinadas às casas dos maridos, ficam demasiado intimidadas para apresentar sequer queixa. Mais: ao abrigo de outro conceito legal islâmico chamado 'qisas' e 'diyat', um familiar directo da vítima pode formalmente "perdoar" um crime em troca de um pagamento, sendo que existem somas específicas para "indemnizar" várias partes do corpo.Funcionários da polícia afirmam que diversos crimes nunca chegam sequer ao seu conhecimento, que muitas queixas são mal fundamentadas e que preferem resolver informalmente muitos casos menores. Mas insistem em que não deixam por investigar com empenho nenhum crime violento ou acusação de assassínio, seja qual for o motivo."Queremos punir o homem que fez isto e as autoridades farão tudo o que puderem para ajudar", garante Ikramullah Niazi, magistrado do Ministério Público em Talagang que, fora do tribunal, tranquilizava os familiares de Kousar Perveen. "Mas é difícil recolher provas, e uma condenação ou uma absolvição são decisões que cabem ao poder judicial. Não há muito que possamos fazer."Defensores dos direitos das mulheres elogiaram a veemente declaração de Musharraf condenando os "assassínios de honra", mas notam que ela não foi acompanhada por um reforço dos meios das investigações ou por uma acção judicial mais rápida. Dizem que crimes desses acontecerão com impunidade enquanto se mantiverem inalteradas as leis que garantem a superioridade dos homens sobre as mulheres e persistir a crença popular de que os "pecados sexuais" das mulheres têm de ser vingados."Partes da sociedade continuam a considerar infame qualquer expressão de independência por parte das mulheres, e a única forma de restaurar a honra da família é acabar rapidamente com a vida do transgressor" - declarou o ano passado a Comissão de Direitos Humanos. A subordinação das mulheres é tão "rotineira" - notou o grupo - que a violência doméstica é geralmente considerada um comportamento "normal", até pelas próprias vítimas.O marido de Zahida Perveen, o barbeiro Mahmoud Iqbal, de 40 anos, não nega que lhe mutilou a cara com uma navalha em 28 de Dezembro de 1998. A sua defesa baseia-se no conceito legal islâmico de "ghairat" ou actos descontrolados face a uma provocação extrema - neste caso, a suspeita de que a mulher lhe era infiel. O marido nada fez contra o cunhado com quem suspeitava que ela estivesse envolvida."Fiz estas coisas, mas estava descontrolado" - afirmou Iqbal, um homem bem constituído, fora da sala do tribunal em Gujar Khan, a 35 quilómetros de Rawalpindi. "Ela andava a provocar-me e a arruinar a minha vida. O que fiz foi errado, mas estou satisfeito. Fi-lo pela minha honra e prestígio."Quando, depois da audiência, Iqbal foi levado, algemado, numa carrinha da polícia, vários homens, familiares e amigos, apertaram-lhe a mão. Mas tarde, quando jornalistas mostraram a fotografia da mulher a um grupo de homens de classe média em Islamabade, vários deles comentaram que ela devia "ter merecido" e que o marido fizera "aquilo que um homem tem de fazer".Embora a lei paquistanesa não condene o assassínio em nome da honra, contém várias determinações islâmicas datadas de 1979 que prevêem punições severas para o crime de 'zina' - adultério ou sexo pré-marital.Homens e mulheres podem ser apedrejados até à morte ou chicoteados cem vezes em público por cometerem 'zina', mas essas acusações são feitas quase exclusivamente a mulheres. E penas duras são raramente aplicadas, muito por ser extremamente difícil provar que os alegados actos sexuais aconteceram. Mas os advogados de mulheres dizem que a lei as intimida, as impede de exigirem os seus direitos e encoraja os homens a abusarem delas impunemente.Há vinte e oito mulheres num abrigo de Rawalpindi, com as portas e janelas dos seus quartos trancadas, e onde apenas são permitidas as visitas dos seus familiares e advogados. Passam os dias a rezar, a estudar o Corão, a bordar e a ver televisão.Uma rapariga bonita, na casa dos vinte anos, fugiu de casa depois de ter sido obrigada a casar com um homem rico com o dobro da sua idade. O pai apresentou queixa dela. Uma mãe de cinco filhos que tentou divorciar-se diz ter sido raptada pelos irmãos e ameaçada de mutilação. Uma terceira, Usma, afirma que o marido a espancou e se juntou com outra mulher, mas que os pais a obrigaram a voltar para ele."Os meus pais dizem que é uma vergonha eu querer o divórcio", afirma Usma, que está refugiada há mais de um ano. "Afirmam que lhes vai arruinar a reputação e que ninguém casará comigo em segunda mão. Não quero ir para casa. Não quero casar outra vez. Só quero ser livre."Casar outra vez é algo quase impensável para mulheres paquistanesas vítimas de violência doméstica; às vezes, os maridos desfiguram-nas ao ponto de nunca mais poderem ser consideradas atraentes.Zahida Perveen, uma mulher magra de cabelo preto encaracolado, pode muito bem ter atraído a atenção do cunhado quando estava casada com o irmão. Mas agora a sua face está marcada, é uma máscara que desperta horror - e outros sentimentos. Há dois meses, à porta do tribunal de Ghujar Khan, uma mulher mais velha olhava para Perveen em silêncio e chorava em silêncio. A mulher deixou cair o seu próprio véu, revelando parte da face queimada. "Foi um acidente" - explicou um homem ao lado dela. "Foi um acidente" - repetiu a mulher rapidamente, reajustando o véu.* © PÚBLICO/The Washington Post

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