Padre Manuel Teixeira, 87 anos: "Não quero assistir à morte de Macau"

Viu chegar e partir 18 governadores, assistirá à partida do 19º. Prepara-se para receber, mas não de braços abertos, o vigésimo, de tipo novo. Monsenhor Manuel Teixeira chegou a Macau a 27 de Outubro de 1924 e pela Ásia foi ficando. Até morrer, garante. O trabalho de investigador da presença portuguesa por estas paragens, por controverso que seja, não deixa de ser incontornável, do alto dos seus 120 títulos e mais de 50 mil páginas. Mas é do testemunho dos últimos 75 anos de Macau que o padre Teixeira se tornou hoje oráculo único. São as memórias do canibalismo, durante a II Guerra Mundial, é o tremer humilhado da administração, perante a ira chinesa na Revolução Cultural. Uma língua temível, polemista omnipresente nas pequenas e grandes guerras do território, monsenhor Man Tak Chun não deixa de ser "uma rica fonte de escrita", o significado do nome chinês com que foi baptizado. E de oralidade, acrescentaríamos nós.

PÚBLICO - Que recordações guarda do Macau dos anos 20?MONSENHOR MANUEL TEIXEIRA - Éramos umas crianças, de 12 ou 13 anos, vivíamos numa comunidade separada do resto da sociedade, no seminário. Cerca de 75 rapazes de todas as nacionalidades, timorenses, chineses, portugueses. Dávamos dois passeios por semana. Íamos até à Ilha Verde, mas sempre em grupo, vigiados. Era um Macau bucólico, com muito poucos portugueses, mas também o tempo de Camilo Pessanha ou de Venceslau de Morais.Quanto aos casos de canibalismo, eles podem não estar registados na história oficial do território, espantaria é se estivessem, mas a minha fonte é de novo insuspeita: o juiz Evaristo Mascarenhas, que me confidenciou, com grande escândalo: "Veja lá, sr. padre, estão a servir carne humana no restaurante chinês do Hotel Central." Fui imediatamente lá, em segredo, e uns chineses disseram-me que deveria ir investigar na zona da Ilha Verde (hoje uma península de Macau). Pedi um barco e consegui acercar-me de um batelão, ancorado no mar, cheio de cadáveres. Todos os que vi tinham um círculo vermelho em volta do peito - tinha sido levantada a carne e, segundo me explicaram os chineses, tirado "as miudezas" para cozinhar. Também tenho informações seguras de que se venderam cadáveres de bebés no Hospital de São Januário, igualmente para cozinhar.Quanto ao cônsul japonês, há um episódio hoje esquecido, mas que fez tremer a comunidade lusa. Ele era muito amigo dos portugueses, procurava fazer o melhor que podia um papel difícil - agradar a Tóquio, usando Macau como retaguarda logística e de informação, sem que com isso ferisse demasiado o orgulho da administração portuguesa. Pois, certa manhã, correu célere a notícia de que o homem tinha sido assassinado. "Macau está perdido", foi o pensamento que ganhou voz, um tanto histérica, entre os funcionários superiores. O cônsul fora mesmo assassinado, por uma facção japonesa extremista. Mas, depois disso, nada de especial se passou.

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