E agora, Luís?

Luís Villas-Boas morreu ontem no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, vitimado pela doença de Alzheimer. À dor dos muitos amigos que cá deixou, junta-se a firme convicção de que, a esta hora, já terá encontrado o seu lugar nas primeiras filas do Cotton Club do Paraíso, batendo o pé ao ritmo do seu amigo Armstrong, cantando de cor o enamoramento musical de Billie e Lester, gritando por Duke e Basie, aplaudindo Bird e conversando com Dizzy, sorvendo Miles e Coltrane.

"Se não fosse o jazz eu já estava velhinho"Luís Villas-Boas, 1990Após prolongada doença, Luís Villas-Boas, que completaria 75 anos no próximo dia 26, morreu ontem em Lisboa, no Hospital de Santa Maria. O funeral, que sai da Igreja de São João de Brito, depois da celebração de uma missa de corpo presente, para o cemitério do Alto de S. João, está marcado para as 14h30 de hoje.Conhecido como "o pai do jazz em Portugal", Luís Villas-Boas foi muito mais do que isso: pai, mãe, irmão, avô, amigo, amante. Ao longo de sucessivas gerações, a maioria dos ouvidos portugueses que se habituaram a tratar por tu, via disco, os maiores nomes da história do jazz, devem-lhe o privilégio da descoberta desse prazer mágico que é a partilha, ao vivo, da música dos grandes mestres. As orquestras de Duke Ellington e Count Basie, Louis Armstrong e Sidney Bechet, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, Miles Davis, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk, Ornette Coleman e Charles Mingus, Bill Evans, Oscar Peterson e McCoy Tyner, Dexter Gordon, Don Byas e Sonny Stitt, Sonny Rollins e Joe Henderson, Art Blakey e Roy Haynes, Chet Baker e Gerry Mulligan, Paul Desmond e Dave Brubeck são apenas uma pequena parte do amplo leque de nomes históricos que tocaram em Portugal pela mão de Villas-Boas. Criticado, às vezes, por "só trazer os músicos de que gostava", os sucessivos cartazes do festival de Cascais confirmam a precipitação da acusação. Natural de Lisboa (n. 1924) e amante de música clássica, uma tradição familiar, Luís Villas-Boas frequentou a Academia dos Amadores de Música e o curso de piano do Conservatório, antes de, aos 18 anos, em plena II Guerra Mundial, descobrir o jazz através das rádios estrangeiras. Da orquestra de Glenn Miller aos pioneiros de New Orleans a viagem foi rápida. No final da década de 40, Villas-Boas começou a trabalhar numa companhia de aviação, emprego ideal, dadas as facilidades de viajar ao encontro dos centros mundiais do jazz, de Paris a Nova Iorque. Entretanto, já iniciara a sua acção "missionária", escrevendo os primeiros artigos especializados sobre jazz, para a "Rádio Mundial", uma publicação de "O Século", e assinando o primeiro programa de jazz na rádio, intitulado Hot Clube, na Emissora Nacional em 1945. Em 1948 fundou o Hot Clube de Portugal, que completa 51 anos no próximo dia 19, concretizando um dos seus maiores sonhos (Luís gostava de lembrar a sua teimosia e o seu espírito de militância, repartido anos a fio pela causa do jazz e a acção sindicalista, nomeadamente no sindicato da Marinha Mercante, Aeronavegação e Pescas e no dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos). Sócio nº 1 e primeiro presidente da direcção, cargo que desempenhou várias vezes, Villas-Boas não mais parou na sua cruzada pela divulgação e dignificação do jazz. Em 1971, depois da aventura do clube Louisiana em Cascais que acabou mal devido à prepotência de vizinhos todo-poderosos, organizou o primeiro Festival de Jazz de Cascais, cujas sucessivas edições funcionaram como uma mola decisiva na criação de um público de concertos de jazz. Figura inconfundível, na generosidade e na teimosia, o seu papel como apresentador do festival tornou-se uma marca do Cascais Jazz: longa e ternamente assobiado sempre que começava a falar, Villas-Boas sabia que aquelas vaias anuais eram, no fundo, um acto de camaradagem e um gesto de agradecimento. Cansado pela falta ou insuficiência de apoios a que se julgava, justamente, com direito e pelas dificuldades anualmente renovadas, acabou por assistir à morte do "seu" festival.Embora retirado da produção de concertos, Luís Villas-Boas continuou a ser uma referência incontornável no círculo do jazz nacional, quer pela atenção com que continuou a acompanhar a actividade dos músicos portugueses, muitos dos quais deram os primeiros passos profissionais pela sua mão, quer pelos programas que protagonizou na televisão. Engana-se quem julga que a popularidade de Villas-Boas era uma questão nacional. Internacionalmente, do circuitos dos festivais às revistas especializadas, era conhecido e respeitado. E para muitos dos músicos que trabalharam para ele, dos mais consagrados aos mais novos, a evocação do nome de Portugal era sinónimo de Luís Villas-Boas.Menos divulgada, a sua acção em prol da música popular portuguesa foi igualmente significativa.No dia em que se escrever a história do jazz em Portugal, o mais fácil será a cronologia: antes de Villas-Boas e depois de Villas-Boas. Ou, dito por palavras alheias, a pré-história de um lado e as idades clássica e moderna do outro.

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