Espreitar o mistério pelo seu rasgão

Direcção artística e escrita apuradas dão destaque a Oxenfree, que fica aquém na hora de atar contundentemente as pontas que vai desatando.

O mistério feito feitiço faz com que os jogadores sintam a urgência de terminar Oxenfree. Claro que não é exclusivo dos videojogos, mas o tremeluzir da curiosidade avança o relógio e investe a primeira pessoa não aceitando que outrem conte ou mostre o que acontece, o desfecho, a explicação, se tanto. Quatro horas para consumir em breves tomos, porque isto de não saber é uma granada despoletada.

Terminado o jogo de estreia da Night School Studios, a lembrança de Lost ou Twin Peaks alimentaram a viagem que, sem chegar a Paul Bowles ou a Sebald, consegue não ser apenas mais um decalque da adolescência ao serviço de um argumento de amperagem bizarra e fantástica. E mesmo falhando na implementação de alguns processos, não significa que não procure uma voz diferente, tentando a demarcação dos seus pares de género.

Oxenfree decorre em Edwards Island, onde um grupo de adolescentes vai à procura de uma festa para descomprimirem, para se ausentarem momentaneamente das suas vidas. Chegamos a bordo de um ferry a um cenário deserto. As lojas estão fechadas e há apenas um carro no parque de estacionamento. Fortificar relações ao longo de uma noite que não deveria destruir nada, não deveria ser mais que inaugurar um novo capítulo nas suas vidas, despir finalmente o casaco cheio de pretérito nos bolsos.

Jogamos como Alex, uma adolescente de cabelo azul que recentemente perdeu Michael, o seu irmão. Ao nosso lado estão Jonas, recém-chegado à sua família como meio-irmão, e Ren, próximo e estimado amigo com uma piada pronta para quase todas as situações. O jogo não demora muito a engrossar o seu elenco: Nona e Clarissa também se juntam ao momento. Nona é o interesse amoroso de Ren e Clarissa é a ex-namorada de Michael.

Ainda que possa parecer que o título tem tudo para ser um drama açucarado das angústias com que muitas obras de entretenimento adoram rotular os rapazes e raparigas nesta faixa etária, desde cedo percebemos que um dos seus maiores trunfos é a escrita, mais concretamente a qualidade dos diálogos incessantes trocados entre protagonista e o resto da comitiva ou até mesmo entre eles, deixando Alex e o jogador na bancada a assistir às edificações e quedas dos variados castelos de cartas que são estas personalidades.

Chegando a fazer lembrar Sorkin, estes diálogos têm uma cadência asfixiante, o que obriga o jogador a estar sempre presente e investido. A prioridade é dar profundidade às personagens, pois já se sabe que é muito difícil laçar o espectador com personalidades genéricas e desenxabidas, inócuas. Oxenfree consegue com uma mestria trabalhada interessar, delinear um crescimento dos jogados em quem joga, diferenciando-os entre si.

Uma prova da sua eficácia é a formação de alianças entre as variadas personagens e o jogador, ou seja, apesar de jogarmos com Alex não estamos impedidos de nos identificarmos mais com o elenco de suporte que não está ali apenas para fazer número ecoando o que a protagonista diz. Isto permite que haja várias linhas de desenvolvimento narrativo ao mesmo tempo, sobrepondo-se e afastando-se, convergindo.

Contudo, a produtora decretou que colocar um grupo de adolescentes numa praia deserta a falar à fogueira e a atirar pedras para o mar não era suficiente para manter o jogador interessado. Oxenfree usa o perigoso trunfo do sobrenatural quase no início da aventura e mantém-se disposto a alimentá-lo até ao final, aumentando a intensidade até que domine o raciocínio do jogador.

É claro que algumas personagens estão em rota de colisão com outras, tal como é sem grande surpresa que lidamos com a tensão advinda da perda de Michael. A culpabilização é tóxica e são óbvias as arestas que ficaram por limar e que condicionam gritantemente a relação de Alex com Clarissa.

Há um acontecimento numa caverna que abre a caixa de Pandora. O grupo tem que lidar com uma situação para a qual não estava preparado, tentando compreender que fenómeno é este, arrastando o jogador para uma vaga de manipulações da realidade, das manifestações que consomem este grupo de adolescentes, acumulando o inexplicável. Enquanto jogava senti a repetição de duas perguntas: o que é que está a acontecer? Como é que o jogo vai explicar tudo isto?

Apesar de quase ser explicado, isso não quer dizer que o final seja totalmente recompensador. É curioso que os momentos mais inspirados de Oxenfree não sejam os decisivos. É muito difícil encerrar um capítulo que se baseia nas improbabilidades, mas fica a sensação de um afrouxar na recta final. O brilhantismo com que se edificam estas personagens merecia um terminus como um soco disferido de onde o jogador não estivesse a olhar.

No último terço da obra fica também patente algum backtracking desnecessário, ou seja, o revisitar de alguns cenários para fazer a aventura progredir. Tal como o paranormal encanta com alguns déjà vus que adensam o mistério, a forma como temos que recalcar terreno estraga um pouco o factor novidade que de outra forma é gerido de forma eficaz.

E é também de forma eficaz que o grupo de amigos é dividido. Sim, quase que faz parte do cânone do género; porém, é um jogo do gato e do rato conjugar o que nos acontece com o que poderá estar a acontecer a quem não está connosco.

Alguns dos membros da Night School Studios trabalharam na Telltale Games, produtora que saltou para as luzes da ribalta com a adaptação de The Walking Dead. Essa inspiração está presente na forma como vamos guiando alguns dos desenvolvimentos. Lembram-se da menção aos diálogos há alguns parágrafos atrás? Bem, é o jogador que tem o poder soberano de decidir as respostas e decisões de Alex, escolhendo uma das opções dadas pelo jogo ou, se preferirem, optando pelo silêncio absoluto.

Quem jogou The Walking Dead sabe perfeitamente como é que isto se desenrola: nos momentos escolhidos pela produtora temos à disposição várias opções que guiam o desenrolar da narrativa, assumindo as rédeas, percebendo que estamos claramente a influenciar a percepção que os outros têm de nós, sendo um dos exemplos mais gritantes a opção de quem vem connosco e quem fica.

Há um tempo alocado a cada decisão, obrigando a uma rapidez de julgamento, como se tivéssemos uma ampulheta a pairar sobre os dedos. E alguns destes momentos têm uma tensão própria, uma vez que nos obrigam a sucedâneas introspecções para que a escolha reflicta certeiramente a nossa visão dos acontecimentos. Não é a invenção de uma mecânica de jogabilidade nova, mas é uma execução excelsa da mesma.

E tudo isto está integrado com o resto da jogabilidade, ou seja, enquanto exploramos os cenários segundo as exigências narrativas vamos também fazendo as nossas escolhas. O resto da jogabilidade resume-se a fazer a nossa personagem deslocar-se; recorrendo a um rádio que capta várias frequências — e que perto do final do jogo é trocado por um modelo com um espectro mais alargado — para desbloquear portas, activar coleccionáveis e comunicar com o lado sobrenatural já mencionado.

Os processos são simples e nunca me senti perdido no cenário, mesmo quando tinha vários caminhos possíveis, uma vez que podemos aceder ao mapa onde está mencionado o local para onde temos que ir a seguir. Como não há propriamente dificuldade, perde-se o desafio, mas abre-se o caminho para os pontos fortes já mencionados brilharem, sendo uma proposta acessível a todos os interessados, mesmo os casuais.

Finalmente importa mencionar as facetas dos campos técnicos. Se a banda-sonora é eficaz, o destaque tem que ser dado à vocalização. Como já foi descrito, estas personagens têm várias camadas de complexidade, algo onde as vozes corroboram a escrita. Seja a ironia, a angústia, a fúria, tudo é convincente e, curiosamente, não há uma personagem que esteja claramente acima do resto do elenco, ou seja, não é a protagonista a recolher toda a atenção.

O capítulo gráfico também convence. Apresentado num falso 2D, o grafismo ilustra uma ilha dividida em falésias, florestas, uma vila, uma torre, cavernas, enfim, a variedade está lá e só é traída com a repetição de alguns cenários. Mais que textura e framerate, percebe-se que Oxenfree fica na memória pela direcção artística. Estejamos em qualquer ponto da ilha, o jogo tem uma tonalidade coerente e carismática, ampliada pelo traço das personagens e pela distorção visual que acompanha as manifestações do sobrenatural.

Alguns dos erros cometidos por Oxenfree podem facilmente ser esquivados na hipotética próxima proposta da Night School Studios. É uma boa obra de estreia e está longe de ser um mau jogo dentro do seu género. O grafismo, a sonoplastia e, sobretudo, a escrita aplicada aos diálogos ficarão como o mais memorável. Há aqui estilo e talento para desassossegar o jogador.

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