Um grafismo genial não chega para fazer um grande clássico

The Order: 1886, uma excelsa colaboração de feitos técnicos não resolve algumas escolhas erróneas que permeiam a jogabilidade.

O jogo The Order: 1886

Memórias vítreas feitas à magnificência deste mundo, o espelhar da montra envergado pelo pensamento enquanto seu nome proferido. O tom visual fica com quem o joga, aproximando-se da razão quanto mais decantado e desconstruido à procura de deslizes incautos da produtora. Quando o resto esfriar ficará tudo o que os olhos viram: arrepio, vislumbre futuro a recordar agora.

Começar a jogar The Order: 1886 é constatar esta façanha técnica que alcança bruscamente a atenção do jogador. O exclusivo PlayStation 4 é uma sucessão de momentos deslumbrantes que não se coíbem de exibir-se perante quem segura o DualShock 4 na mão e começa a acreditar que o produto final faz mínima justiça às imagens e vídeos que foram escrutinando enquanto a sua produção decorria.

Não é apenas a qualidade ou resolução das texturas. O que causa tanto impacto no grafismo é o trabalho em uníssono do talento técnico com a direcção artística. Só assim é possível termos um jogo de época tão credível, uma aventura por Londres Vitoriana como imaginada pelas mentes da Ready at Dawn. Só assim é possível experienciar o decoro destas horas no século XIX respirando o oxigénio do século XXI.

O reflexo nas pedras nobres, chamas agitadas pacientemente, efeitos de luz que enchem o cenário nos tons laranja de um grande fogo, das ocasionais fogueiras. O tom cinzento de Londres igual à sua névoa. Barris, poças de água que desafiam a salubridade pública. Mercados nos recantos contrastam, tal como plantas que perdidas trepam o tijolo cru numa mescla de tons.

Garrafas dançam pelo chão entre os nossos passos. Ruas e ruelas enlameadas, becos que não levam a lado algum e apenas servem para que o jogador repare com minúcia todos os recantos e se deixe surpreender pela constatação de até onde foi a atenção ao pormenor - como se o momento captado pelo videojogo fosse apenas isso, um momento temporal, curto trecho da nossa passagem que interrompe a vida que ali ocorre quotidianamente antes e depois do apontar da câmara.

Este ambiente credível é válido para os cenários interiores, para a maneira como o recheio de uma qualquer casa foi disposto para alimentar a ilusão, incluindo o burlesco do “Aux Belles Muses”; nas vestes de Sir Galahad, protagonista do jogo, e do elenco que o acompanha, por exemplo, Lady Igraine, Sebastian Malory, Marquês de Lafayette e o incontornável Nikola Tesla. As várias e variadas camadas de tecido, a maneira como reagem ao movimento de forma convincente, tal como as expressões em tela de tez, ajudam a passar a mensagem dos personagens.

São incontáveis os exemplos para descrever um dos pináculos técnicos desta geração de consolas. Um sôfrego exercício que denota ainda a maneira como fica ensopada com combustível; as faúlhas e outras partículas, enfim, um manancial de situações em que a produtora faz questão de exibir o seu jogo, algo comprovado pela bátega que dá um reluzir especial ao cenário e parece mandar perguntar ao jogador se já está impressionado.

A viagem a esta visão da capital inglesa pretérita é feita a mando de um argumento que interessa sem nunca despertar uma raiva apenas sanada quando conhecermos o seu desfecho. É uma conspiração onde se vai ganhando e perdendo confiança: os cavaleiros da Távola esforçam-se por garantir o segredo de uma espécie híbrida composta por homem e besta. Contudo, com o passar do tempo, a raça que não a nossa não desarma. Esta sociedade “crème de la crème”, designada como The Order, é ainda marcada pela “Blackwater”, substância misteriosa que, entre outros atributos, consegue aumentar exponencialmente a vida de quem a ingere.

Os acontecimentos versam ainda sobre a existência da “United India Company”, rebeldes, enfim, vários parâmetros conspirativos que nunca chegam a ser devidamente aproveitados. Com o passar das horas, a narrativa começa a ganhar tracção, mas o jogo acaba prematuramente de forma pouco satisfatória. É possível terminar The Order: 1886 num dia sem recorrer a um passo acelerado, algo que se torna mais gritante quando os créditos aparecem no ecrã de forma inesperada e ainda se esperavam uma ou duas horas de jogo pela frente. 

As querelas não se ficam por aqui. À longevidade que deixa a desejar existem outros problemas acoplados. A Ready at Dawn queria tanto mostrar as maravilhas técnicas do seu jogo que, ocasionalmente, parece esquecer-se do jogador. Ou melhor: existem vários capítulos em que não chegamos a tocar no comando, ficando apenas a observar a aceleração da narrativa em piloto automático.

E quando estamos a participar activamente no decorrer do jogo, a jogabilidade tem alguns problemas que merecem ser mencionados. Além das cenas de vídeo intrometidas, também abundantes são os Quick Time Events, momentos em que temos que replicar no comando os botões designados no ecrã, sejam testes à nossa reacção de movimentos ou à rapidez com que conseguimos pressionar o mesmo botão.

Na sua essência, The Order: 1886 é um jogo de acção na terceira pessoa, ou seja, os termos práticos que coloca em cima da mesa fazem-nos abrigar das investidas dos inimigos, pejá-los com fogo de resposta e estar atento aos flancos, contemplando o seu avançar. É um género amplamente conhecido. Contudo, a sensação predominante é que estamos a avançar de horda em horda, de área em área.

A Ready at Dawn ainda tenta combater esta sedimentação intercalando alguns segmentos de acção furtiva e outros trechos em que temos que lutar contra criaturas sedentas da nossa existência que instantaneamente as açula. O segundo caso resulta muito melhor do que o primeiro, proporcionando alguns momentos tensos, especialmente quando estamos a medir forças contra os Lycan de maior porte. O que deixa a desejar não é a sua execução mas sim a falta dela, pois tais encontros são escassos, demasiado escassos.

Isto não desagua em mais queixumes porque a selecção de armas é aprimorada. Arpão de Arco, Termocarabina e Canhão Magnésio são as expressões Steampunk maiores. Ainda que não sejam armas usadas corriqueiramente, sempre que temos acesso à sua posse é um acontecimento. O poder bélico é impressionante, tal como é o seu desenho, as suas partes móveis, a sua complexidade - algo que torna tão satisfatório o pressionar do gatilho como a maquinaria de bastidores.

Conforme já foi mencionado, tudo o que é mostrado pelo jogo é de uma apresentação incontestável. Todavia, os cenários assentam em mapas lineares, em que o jogo sabe exactamente onde quer e onde tem o jogador, nunca lhe permitindo a exploração da área, por muito grave que seja a sua curiosidade. Num universo digital tão rico, a minha vontade era perder-me no metropolitano londrino, explorar a meu bel-prazer áreas que prometem tanto. Mesmo quando o objectivo é vago, a sua conclusão está sempre a uns metros de distância, ou seja, aquela sensação de engendrar uma solução é esmigalhada pelo tropeçar na própria.

Regressar aos capítulos técnicos desta crítica é atestar novamente a sua qualidade, desta vez na sonoplastia. A banda sonora é adequada, com arranjos e empolarem os momentos mais decisivos, com os coros a ressoarem o que é mostrado. Mesmo sem a ajuda visual, os temas de Jason Graves são na sua maioria épicos, grandiosos. Consolidando o trabalho que tem vindo a desenvolver, a PlayStation Portugal disponibiliza a vocalização e legendagem do jogo totalmente em português, contando na sua esteira de actores com Pedro Lima, Cláudia Vieira, Virgílio Castelo e Liliana Santos. O trabalho é sólido, ficando apenas a desejar em alguns momentos em que a emoção exigia algo mais genuíno, sem filtros entre o cavernoso sentir do personagem e os tímpanos do jogador.

Depois de terminado pouco mais há a fazer em The Order: 1886. Jogar novamente alguns capítulos para apanhar os coleccionáveis em falta, talvez testemunhar novamente um momento marcante da narrativa. Mais que isso só será possível na eventual sequela ou DLC para que a produtora parece apontar com o já mencionado final precoce. Mesmo com várias apostas fracassadas e uma falta de ambição na sua jogabilidade, não é um falhanço total: à altivez técnica faz falta a expressão da paixão de que são feitos os grandes clássicos.

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