SNS: o “nevoeiro” dissipa-se, a opacidade interesseira não

Estão os privados dispostos a fazer ensino pós-graduado de qualidade com se faz nos serviços públicos?

O Dr. Artur Osório Araújo (AOA) volta à carga na defesa a outrance da saúde privada no PÚBLICO de 14 de Junho com o artigo “Será o sol capaz de furar o nevoeiro?”. Como sempre, não com a explanação simples das suas virtudes, mas retirando estas da contraposição agressiva às do Serviço Nacional de Saúde (SNS), necessariamente público.

Vá lá que agora com a nota curricular prévia (táctica, claro, pois a isso foi obrigado…) onde confessa o seu passado de gestor público enroupado como uma permissão para ser um “observador desapaixonado e verdadeiro” (!). Desapaixonado será, mas verdadeiro talvez seja uma petulância que o seu actual cargo de presidente da Associação Portuguesa de Hospitais Privados nega. Mas enfim, também a citação de versos de Fernando Pessoa, à guisa de preâmbulo  do texto, diz mais dum escriba que aquilo que este julga somar (neste caso a heteronímia do poeta talvez não venha a despropósito)…

Mas vamos ao que diz AOA. Talvez eu seja um dos que este apelida de portadores de “dogmas provincianamente ideológicos” (sic) mas o que não sou é um ambivalente que me vou servindo dum sistema que vou vigiando por dentro (cá está a “falta de paixão”…), sempre atento ao momento certo em que, rapace, mudo de campo para atacar aquilo que fui (?) e me situar “naquilo que sempre quis que as coisas fossem”. E esse momento chegou com este destruir dos serviços públicos que o actual Governo prossegue duma forma desalmada. Claro que sem ideologia nenhuma ou pelo menos sem adjectivação da mesma…

Todo o texto de AOA é “inteligente” mas não sério. Que “o nosso sistema de saúde fragmentado com sobreposição de prestadores, com sobreposição de interesses, é uma manta de retalhos…”  é, em parte, verdadeiro mas veja lá o que não seria o SNS se a separação de público e privado, preconizada por tantos, não seria se, mesmo assim, chegou onde chegou em indicadores de saúde tão bons! Mas os que geriam o sistema estavam com “um pé no acelerador e o outro no travão (ideológico e doutrinário e… interesseiro)”…

Mas há mais. À insinuação que o sistema de saúde privado é lucidamente informado no plano científico e gestionário versus o anacronismo dos profissionais do serviço público ( “… podemos pensar a saúde como há 40 anos?”) respondo que, fossem os actuais “pensadores” como o senhor, tão válidos e, acima de tudo, tão desinteressados como esses “velhos de antanho” e o SNS continuaria feito por muitos (bons)  e não somente “por quem fizer melhor e mais barato” ( e quanto ao melhor, temos muito a conversar…) e… para todos! “ O doente vai ser diagnosticado e tratado no individual e não no colectivo” ?! Não seja malévolo e pernicioso! Desde quando um médico não tratou o doente como ser único e individual? O senhor leu (?) o código deontológico da OM e terá conhecimento da ética geral e profissional… ou não?

“O SNS estatal deverá dar lugar ao SNS do cidadão…” (sic), termina AOA. A tirada é tonitruante mas banal. Todo o médico sabe que ser humanista é o seu primeiro dever e a solidariedade que AOA  reclama não é posse exclusiva dos privados. E o senhor bem o sabe mas quer omiti-lo. Mais uma vez se lhe pede honestidade intelectual.

Termino. Não sem que antes aqui lhe deixe algumas perguntas: estão os privados dispostos a fazer ensino pós-graduado de qualidade com se faz nos serviços públicos? Estão dispostos a ter serviços onerosos como os cuidados intensivos, cardiologia de intervenção, transplantações e outros? Receberão sem “triagem económica e social” qualquer doente? Tudo isto… sem se “pendurarem” nos subsídios do Estado e ainda enjeitando para este tudo aquilo que “custa muito dinheiro” pois, dirão então cinicamente… o Estado que cuide dos cidadãos…

Declaração de interesses: pratiquei clínica privada durante alguns anos, sempre e só como especialista e nunca enquanto director dum serviço público hospitalar, e fui-o por três vezes.

Chefe de Serviço de Pediatria do SNS, aposentado

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