O mercado das "barrigas de aluguer"

É um mercado "essencialmente cruel e nenhum enquadramento jurídico poderá torná-lo mais humano”.

E, como vai sendo habitual em situações semelhantes, apresentam-se exemplos concretos, susceptíveis de provocar natural empatia, de casais que assim veriam aberto o acesso à paternidade e maternidade. Mas importa considerar a questão em profundidade e com atenção a todas as suas implicações.

Uma discussão profunda da questão tem ocorrido, por exemplo, em França, onde uma importante corrente de pensamento, conotada com a esquerda, denuncia vigorosamente essa prática como expressão de um grave retrocesso social. É o que faz o documento Mères Porteuses  Extension du Domaine de l´Aliénation elaborado no âmbito da fundação Terra Nova – La Fondation Progressiste. Nele se afirma que a maternidade de substituição representa “a mais recente e a mais chocante das extensões do domínio da alienação”, ou seja, da coisificação e instrumentalização da pessoa, de que são principais vítimas as mulheres mais pobres.

Na mesma linha se pronuncia a filósofa Sylviane Agacinski, esposa do antigo primeiro-ministro socialista Lionel Jospin, no livro Corps em miettes (Flamamrion, 2013).

Sylviane Agacinski desmascara aquilo que considera alguns mitos. Um deles é o da pretensa finalidade terapêutica. É óbvio que não será desta forma que os casais inférteis passarão a ser férteis, sendo que a criança nunca terá a mesma ligação à mãe “intencional” ou “genética” que tem quando a gestação se dá de forma natural.

Outro mito é o da gratuidade. A experiência tem revelado a extrema dificuldade em impedir a comercialização encapotada por detrás da suposta não onerosidade dos contratos. A “compensação de despesas” acaba por ter efeitos idênticos aos do pagamento. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia) e essa sujeição não pode considerar-se expressão autêntica de liberdade.

Questões a ter em conta, para além do desejo dos requerentes, são o bem da criança e o bem da “mãe de substituição”.

O filho nunca deixa de sentir o abandono a que é sujeito. Cada vez se conhece melhor os intercâmbios entre a mãe gestante e o feto e a importância desse intercâmbio para o salutar desenvolvimento físico, psicológico e afectivo deste. A criança não poderá experimentar a segurança de reconhecer, depois do nascimento, o corpo onde habitou durante vários meses.

Em especial, devem ser considerados os graves danos para a mãe gestante, que não pode deixar de viver a gravidez como sua e de sofrer com o abandono do filho que lhe é imposto (a imposição de renúncia à mais espontânea e natural das obrigações: cuidar do filho que se gerou). O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A gravidez não é uma actividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher física, psicológica e moralmente; situa-se – salienta Sylviane Agacinski – não no domínio do ter ou do fazer, mas no domínio do ser.

É por isto que esta filósofa fala a este respeito em “alienação biológica”. A mãe gestante “deve viver nove meses, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, abstraindo da sua própria existência corporal e moral. Deve transformar o seu corpo em instrumento biológico do desejo de outrem, em suma, ela deve viver ao serviço de outrem, privando a sua existência de qualquer significado para ela própria”. “Uma mulher paga para estar grávida come, dorme e dá à luz ao serviço de outrem. Serve de instrumento de procriação como um forno serve para cozer o pão. (…) é a sua individualidade que ela aliena, ou seja, a sua vida íntima e pessoal, a qual devia ser insubstituível”. Quando “o direito de cada um viver para si mesmo, segundo os seus próprios fins, está no coração da nossa concepção de liberdade e dignidade humana”.

Em vários países, é reconhecido à mãe gestante o direito de se arrepender e ficar com a criança à sua guarda (o que não deixa de ser contraditório com a obrigação que assumiu perante os requerentes). Comenta a este respeito Sylviane Agacinski: não significa isso o reconhecimento implícito de que se estão a “violentar sentimentos humanos profundos e legítimos” e a “ferir emoções humanas elementares”?

Em suma, conclui esta filósofa francesa (e seria bom que concluíssem também os nossos deputados): o mercado das “barrigas de aluguer” “é essencialmente cruel e nenhum enquadramento jurídico poderá torná-lo mais humano”.

Juiz

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