O chumbo que se impunha

Há que agradecer ao Tribunal Constitucional a amabilidade de ter demonstrado longamente que o referendo inventado em cima do joelho pelo PSD para impedir a aprovação da lei da co-adopção é mesmo tão idiota quanto sempre pareceu.

“Idiota” tem apenas seis caracteres, enquanto o acórdão utiliza 92.789 para chegar à mesma conclusão, mas acreditem: é para mim um verdadeiro conforto espiritual ver ali desmontada a vergonhosa confusão entre adopção e co-adopção por casais homossexuais que o PSD quis promover, ao mesmo tempo que são valorizadas quatro palavras que demasiada gente neste país continua a não querer perceber o que significam: interesse superior da criança.

Eu sei que já gastei bastante latim neste espaço a propósito da co-adopção, mas nos tempos complicados que vivemos todos nós temos obrigação de ser cidadãos cada vez mais atentos, donos da sua própria cabeça, capazes de separar o trigo do joio, sensíveis à complexidade de questões como esta, e radicalmente alérgicos a quem faz da golpada política um estilo de vida. A co-adopção e a adopção por casais homossexuais não são, de facto, a mesma coisa. É perfeitamente possível ser a favor da primeira e contra a segunda, e juntar as duas coisas num único referendo tinha apenas a intenção de tentar chumbar a co-adopção por arrasto, e assim continuar a deixar desprotegidas crianças que têm todo o direito de ver as pessoas que consideram ser seus pais ou suas mães legalmente reconhecidas como tal.

Deixem-me citar o acórdão, que vale a pena: “Na primeira questão existe uma família de facto já constituída, enquanto na segunda se pretende constituir uma família ex novo. Assim, nesta segunda questão já não estará em causa o interesse do menor em ver reconhecida uma relação jurídica com uma família em concreto, mas apenas uma simples pretensão de um casal a adoptar, ex novo, uma criança que não terá, à partida, qualquer relação com o casal, ainda que tenha interesse em ser adoptada, em geral.”
E é aqui que nós entramos na questão fulcral – a do interesse superior da criança, e que, se assim for entendida, não consigo sequer conceber que se confunda adopção e co-adopção, a não ser por manifesta má fé. Voltando ao acórdão, e àquela que me parece ser a sua frase-chave, apesar de estar perdida no meio do texto: “Na primeira questão, pode valorar-se primacialmente o interesse da criança em estabelecer relações jurídicas com um dos seus cuidadores, enquanto na segunda estão em causa primacialmente os interesses de casais do mesmo sexo em poder aceder à possibilidade de adoptar crianças.”

Aleluia, aleluia. Meninos da JSD e outros que tais, ponham isto na cabeça: enquanto a adopção por casais gay é, em primeiro lugar, uma luta por direitos de adultos, a co-adopção por casais gay é, em primeiro lugar, uma luta por direitos das crianças. Como refere o acórdão, citando o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o objectivo da adopção é “dar uma família a uma criança e não uma criança a uma família” – e portanto, no caso da adopção por homossexuais, a discriminação dos adultos é irrelevante, se for no interesse da criança. Só que, no caso da co-adopção, a família já existe, e a criança já está integrada nela. É o seu interesse superior que está a ser defendido. Fico muito feliz que os juízes do Palácio Ratton tenham reconhecido isso. Fico muito feliz que um referendo que envergonharia a nossa democracia tenha sido chumbado pelo Tribunal Constitucional.

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