“Não há mais doentes nas urgências, as equipas é que já estão no fio da navalha”

Associação de Administradores Hospitalares denuncia falta de médicos e de autonomia das administrações para contratarem atempadamente. Ministério diz que procura por parte dos doentes foi superior.

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Em várias unidades hospitalares do país há falta de camas Nélson Garrido

As longas horas de espera registadas nas últimas semanas nas urgências de hospitais de vários pontos do país têm para a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) uma explicação que não passa pelo aumento da procura. “Não há mais doentes nas urgências do que noutros anos na mesma altura, as equipas é que já estão no fio da navalha e não é possível haver mais elasticidade”, resume a presidente da APAH, Marta Temido. Numa ronda que o PÚBLICO fez por vários hospitais do Serviço Nacional de Saúde, o número de casos atendidos nas últimas semanas nas urgências esteve em linha com a mesma altura de 2013 e, em alguns casos, até baixou.

Marta Temido garante que “não é possível encontrar um único responsável ou culpado” e prefere antes apontar para uma “responsabilidade partilhada entre a gestão, o Ministério da Saúde, os médicos e até mesmo os doentes”. A administradora hospitalar defende que o país acaba por responder melhor a situações imprevistas – como aconteceu com o surto de Legionella – do que a situações esperadas como as doenças respiratórias no Inverno. “Mas não posso deixar de reforçar que a maior fonte do problema está na falta de recursos humanos e no facto de os hospitais não terem autonomia para contratar com agilidade”, acrescenta, defendendo que nestes casos os conselhos de administração devem ponderar medidas “pouco populares”, como interromper férias.

Problemas semelhantes aos referidos pelo secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos mas que, numa nota, critica “muitas administrações” por terem “avançado na contenção de custos, reduzindo numericamente a composição das equipas médicas (e de outros profissionais) a mínimos perigosos para a qualidade e sustentabilidade da prestação de cuidados”. Jorge Roque da Cunha aponta também que muitas empresas de recrutamento concorrem para horários sem terem clínicos para os preencher, ao mesmo tempo que critica o encerramento de “inúmeros serviços de atendimento a situações agudas nos Cuidados de Saúde Primários, serviços esses passíveis de ‘descongestionarem’ as urgências hospitalares”.

A verdade é que algumas das instituições como o Hospital Fernando da Fonseca (conhecido como Amadora-Sintra), que na altura do Natal registou esperas superiores a 20 horas, até receberam menos doentes. De acordo com os dados enviados ao PÚBLICO, o hospital recebeu em 2014, em média, 371 doentes por dia, quando em 2013 tinham sido 378. Olhando especificamente para Dezembro, a média até desceu de 382 doentes em 2013 para 341 no ano passado. Em 2008, por exemplo, eram 426. Na altura das festas o maior pico aconteceu a 26 de Dezembro, com 417 doentes – mas o pior tempo médio de espera foi mesmo a 24 de Dezembro. O problema esteve na escala de médicos, com alguns profissionais doentes. A unidade acabou por receber autorização posterior para contratações extraordinárias.

Problema debatido na Assembleia da República
Os problemas nas urgências vão ser levados à Assembleia da República na quinta-feira, depois de o grupo parlamentar do PS ter apresentado um agendamento potestativo, diz a Lusa. Em causa estão casos como uma morte no Hospital de São José e outra no Hospital de Santa Maria da Feira que obrigaram à abertura de inquéritos para apurar uma eventual relação entre os óbitos e a espera nas urgências.

O Ministério da Saúde, por seu lado, numa resposta escrita, garante que “há uma afluência excessiva e de doentes idosos”, apesar de reconhecer que “há carência de médicos para lidar com o pico do frio/gripe em certas unidades, situação que se agravou com a marcação de férias” e falta de camas. “Para lidar com a situação, que pode ainda registar maiores afluências, o Ministério permitiu (e continuará a fazê-lo), onde necessário, a contratação de médicos como prestadores de serviços mesmo que isso signifique exceder o valor/hora padronizado; alargou, também onde necessário, os horários dos cuidados primários e fá-lo-á de novo, se necessário”, acrescenta a tutela.

Também no Centro Hospitalar de Lisboa Central (do qual faz parte o Hospital de São José) a afluência média às urgências em Dezembro foi de 400 a 450 doentes, com um pico de 510 atendimentos. “No mesmo período do ano passado, essa afluência foi superior, uma vez que que, nesse mês, o CHLC assegurava a Urgência Metropolitana de Lisboa, o que se traduz num acréscimo médio diário de cerca de 50 doentes. No entanto, verifica-se este ano um aumento do número de doentes acamados e de situações clínicas mais graves”, salientou a unidade ao PÚBLICO.

Já o Centro Hospitalar Lisboa Norte (hospitais de Santa Maria e Pulido Valente) forneceu os dados apenas para os primeiros dias do ano, com o pico a ser atingido a 5 de Janeiro, com 668 utentes. O dia com menos gente foi mesmo 1 de Janeiro, com 435 utentes – valores em linha com 2013.

Na zona centro, houve uma média de 284 doentes por dia nesta época no Centro Hospitalar do Baixo Vouga (hospitais de Aveiro, Águeda e Estarreja). No ano anterior tinham sido 252, mas como foi activado um plano de contingência o tempo de espera caiu.

A norte, segundo explicou ao PÚBLICO o director do serviço de urgência do Centro Hospitalar São João, João Sá, a afluência na época festiva foi maior que em 2013, ainda que ligeiramente. Em média passam pela urgência do São João 450 doentes por dia, mas o médico explica que um acréscimo representa uma pressão a que os recursos já nem sempre conseguem responder. “Há cada vez menos capacidade de adaptação dos recursos humanos à afluência de doentes”, lamenta João Sá, reforçando a importância de as urgências contarem apenas com profissionais em exclusivo e rejeitando que a solução passe pela “incerteza” dos tarefeiros.

Noutras unidades do país tem havido problema como a falta de camas no Hospital de Gaia e no Hospital de Santo António, refere a Lusa. Também a Unidade Local de Saúde do Alto Minho registou um aumento de doentes em relação a 2013. No Hospital de Beja os números têm estado dentro do previsto, assim como no Algarve. Já em Évora houve um aumento da espera, mas devido aos poucos médicos.

Do lado da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) ainda não há dados centralizados. No entanto, a ACSS tem destacado “o facto das contratações de médicos, enfermeiros e de outros profissionais terem vindo a aumentar, contrastando com a redução das prestações de serviço”. De acordo com as contas feitas ao PÚBLICO, com o aumento do horário de trabalho de 35 para 40 horas semanais, foi possível conseguir que 1015 médicos trabalhassem mais seis horas nas urgências – o que corresponde a um total nacional de mais 6890 horas por semana. Mas a ACSS reconhece que há impactos que advêm da possibilidade de os médicos poderem pedir dispensa, a partir dos 55, deste tipo de trabalho.

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