Filhos de ex-combatentes portugueses na Guiné deixaram hoje coroa de flores "ao pai desconhecido"

Em 11 anos de guerra, que na Guiné começou em 1963, até à independência, em 1974, passaram por um país com o tamanho aproximado do Alentejo cerca de 200 mil homens portugueses.

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Fernando Edgar da Silva é o presidente da nova associação Manuel Roberto

Um grupo de guineenses, que são filhos de ex-combatentes portugueses da guerra colonial com mulheres guineenses mas que não conhecem os seus pais, criou uma associação para defender o seu direito à cidadania portuguesa e a conhecerem os seus progenitores. Depositaram nesta sexta-feira, simbolicamente, uma coroa de flores “ao pai desconhecido” no cemitério de Bissau, informou o seu presidente, Fernando Edgar da Silva.

A Associação de Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné foi criada na sequência de uma reportagem do PÚBLICO, Em busca do pai tuga, que deu a conhecer a realidade dos filhos que os militares portugueses tiveram com mulheres guineenses na altura da guerra e que ficaram na ex-colónia portuguesa depois do conflito. Não tinham nascido ou ainda eram crianças quando os pais deixaram o país. Hoje, andam na casa dos 40, 50 anos.

A maioria nunca conheceu os seus pais, tem deles apenas nomes ou elementos dispersos, e poucos foram os que, na Guiné, tiveram meios para descobrir o seu paradeiro. Esta associação junta cerca de 50 filhos, apenas de Bissau, mas quer representar um número indeterminado de pessoas nas mesmas circunstâncias. Para Fernando Edgar da Silva, “são centenas de pessoas espalhadas pelo país”. Na cerimónia ao pai desconhecido, hoje de manhã, estiveram presentes dez.

O grande objectivo da associação é tentar que estes filhos obtenham a cidadania portuguesa, porque, defendem, embora não tenham sido oficialmente reconhecidos, são filhos de pais portugueses. Ao mesmo tempo, o que muitos querem é entrar em contacto com os seus pais, explicou o seu presidente. Estão neste momento a tentar ser recebidos na embaixada de Portugal no país.

"Cidadãos de segunda”
Fernando Edgar da Silva nasceu em 1968 e é camionista. A sua mãe vivia junto ao quartel português de Canchungo (ex-Teixeira Pinto), o pai esteve na Guiné de 1966 a 1967. Sabe apenas que era furriel.

O secretário da nova associação é o técnico agrário José Maria Indéqui. Acha que o seu verdadeiro nome, que lhe foi dado pelo pai, é José Carlos dos Santos. Nasceu a 1971, o pai talvez tenha voltado a Portugal em 1973 ou 1974 — esteve colocado no quartel de Pelundo, na região de Cachéu. O pai vivia maritalmente com a mãe e tiveram mais duas raparigas. Diz que os filhos dos portugueses na Guiné são "cidadãos de segunda”. “Estamos no meio da barcaça."

Fátima Cruz é a tesoureira. Nasceu em 1975, é comerciante de roupa em Bissau. O pai esteve no quartel de Empada e de Cutia, a sua comissão foi de 1973 a 1974. A sua mãe era lavadeira do pai. Fátima conta que ainda terá sido o pai a escolher-lhe o nome, que seria o da sua mãe. O tio materno da mãe, que era contra a gravidez, terá queimado todas as encomendas e Fátima nunca mais soube nada do pai. Nunca viu imagens dele, mas a mãe diz-lhe que é parecida com ele.

Laços perdidos
Em 11 anos de guerra, que na Guiné começou em 1963, até à independência, em 1974, passaram por um país com o tamanho aproximado do Alentejo cerca de 200 mil homens portugueses.

Na altura da reportagem, o PÚBLICO questionou a embaixada de Bissau sobre esta realidade. Responderam que, no último ano, o Gabinete do Adido de Defesa registou três casos de pessoas que fizeram perguntas sobre pais ex-combatentes.

"Na maioria das vezes, ficam pelos pedidos de informação, pois já não dispõem de documentação ou outro tipo de comprovativo (como fotografias) para basear a abertura de um processo." Outros filhos foram bater à porta da Cruz Vermelha, também em Bissau. Valério Candete, responsável pelo restabelecimento de laços familiares, disse que, desde 2010, recebeu 13 pedidos de informações sobre pais portugueses do tempo da guerra.

Nos Estados Unidos, os filhos dos soldados americanos com mulheres vietnamitas, que nasceram de ligações ocorridas durante a guerra do Vietnam (1965-1973), até têm nome — chamam-lhes amerasians (fusão das palavras americanos com asiáticos). De tal forma o assunto se tornou público que estes "filhos do pó", como eram conhecidos no Vietname — muitos deles cresceram em orfanatos ou tornaram-se sem-abrigo —, ganharam direito ao estatuto de imigrante americano de forma automática. Em 1987, o Amerasian Homecoming Act deu-lhes esse direito, sem necessidade de haver provas de paternidade. Bastava terem a mínima presença de traços físicos ocidentais.

Ao abrigo dessa lei, emigraram para os Estados Unidos 26 mil filhos e mais 75 mil dos seus familiares. Um estudo publicado no Journal of Multicultural Counseling and Development sobre este universo concluiu que 76% desejavam conhecer os seus pais, mas só 33% sabiam os seus nomes. Outros 22% tinham tentado estabelecer contacto, mas só 3% tinham tido a oportunidade de conhecer os seus pais biológicos.

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