A ADSE tem futuro

Deve aproveitar-se o momento para converter a ADSE numa mútua de funcionários e reformados, gerida pelos trabalhadores.

Duas notícias recentes sobre o futuro da ADSE tiveram alguma repercussão: o Governo anunciou que iria mudar a tutela da ADSE das Finanças para a Saúde; o PS propôs a conversão da ADSE em mútua para funcionários, por estes basicamente financiada e gerida. Os sindicatos da função pública apoiaram esta proposta. O que é, afinal a ADSE, ou melhor, a Direcção-Geral da Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública?

Trata-se de um subsistema de saúde criado em 1963 mas só desenvolvido nos anos setenta, passando de 2% de população coberta em 1970, chegando aos 4% em 1978, alcançando em 2012 uma cobertura de 1,33 milhões de habitantes, ou seja, 12,7% da população portuguesa. Os seus beneficiários eram, em 2012, funcionários e agentes em actividade (41%), aposentados (25%) e familiares de uns e outros (34%). O subsistema não tem serviços prestadores, limita-se a pagar serviços em regime de convenção a prestadores privados, ou a reembolsar os beneficiários do custo parcial de serviços que eles procurem em regime livre. O subsistema não responde pela saúde dos seus beneficiários, apenas paga cuidados de saúde. O esquema de benefícios nunca incluiu medidas de prevenção da doença e de promoção da saúde, e a liberdade de escolha de que gozam os utentes fragmenta a visão global ou holística, uma aspiração de todos os sistemas de saúde. Daí que a sua intervenção seja basicamente contratual e financeira, sem direcção clínica efectiva, nem intervenção coordenada e continuada de cuidados. Pagam-se serviços.

Fortemente vulnerável à indução da procura pela oferta, os serviços, tudo contado, são em média de custo superior ao do sistema universal SNS, exigindo elevado co-pagamento do utente, (cerca de 20%, em 2011), o qual só foi possível ao longo dos mais de 50 anos da ADSE por os ordenados da função pública, embora baixos, serem em média superiores aos dos trabalhadores por conta de outrem, beneficiários do SNS. O apoio da ADSE concentra-se em cuidados em ambulatório e internamentos de curta duração e cirurgia electiva. Os casos mais complicados ficavam e ficam quase sempre a cargo do SNS.

Como acontece nos sistemas convencionados, o ritmo de crescimento de gastos foi sempre superior ao do SNS. Nos dez anos que mediaram entre 1999 e 2009, os gastos com a ADSE, a preços correntes, subiram cerca de 100%, com um crescimento médio anual de 8%, muito superior ao PIB e ao ritmo do crescimento do gasto público com o SNS. Em 2009, despendeu quase um milhar de milhões de euros (0,934) consumindo 10,4% do gasto público total em Saúde, embora não cobra a totalidade da despesa de saúde incorrida pelos seus inscritos. A partir de 2010, a ADSE deixou de pagar encargos dos seus inscritos nos hospitais do SNS, bem como a parte comparticipada dos medicamentos prescritos nas unidades públicas. Este alívio das responsabilidades financeiras da ADSE, visível a partir de 2011, implicou que o subsistema deixasse de despender, só em hospitalização, cerca de 50% do seu gasto total, valor correspondente à média desses seus encargos entre 2006 e 2009; na parte correspondente a medicamentos, a despesa da ADSE, pela razão atrás enunciada bem como pela redução dos preços operada no mercado, baixou cerca de 50%. Em contrapartida, o já pesado orçamento do SNS teve que acolher mais estas responsabilidades. Liberta de dois pesados ónus, a ADSE passou a ter maior folga financeira, confirmada ainda pela subida de comparticipação do beneficiário, de 1 para 1,5% em 2006, mais tarde para 2,5% e a partir de Janeiro de 2014 para 3,5%.

A mudança do financiamento dos encargos com a ADSE teve profundas implicações na sua actividade. Passou a celebrar convenções com a hospitalização privada, e a ser mais generosa em cuidados dentários, dispositivos de compensação e na forma como retribui a cirurgia que contrata, quase sempre electiva (oftalmológica, dermatológica, ortopédica e outra) e não urgente, o que atraiu novos convencionados. A hospitalização privada reconhece na ADSE um importante financiador, de cerca de 30% da sua actividade. No seu novo modelo financeiro, em 2011 a ADSE despendeu quase 500 milhões de euros, cobertos em cerca de um terço (34%) por receitas do Estado como entidade patronal, 44% vinda de descontos cobrados aos beneficiários e os restantes 20% vindos de pagamentos directos do utente, no momento do acto. Um modelo impossível de aplicar ao SNS.

Este conjunto de dados (colhidos nos Relatórios da ADSE) permite desfazer algumas ideias infundadas que têm circulado quase sem contraditório: que a ADSE teria qualidade superior ao SNS, que a ADSE seria mais eficiente na análise de custos unitários que o SNS, que o modelo ADSE deveria ser alargado a todo o SNS. Basta pensarmos no facto de o SNS ter sido recentemente sobrecarregado com encargos anteriormente pagos pela ADSE, bem como nos encargos individuais não comparticipados para concluirmos pela ligeireza desta análise.

A favor da ADSE devem referir-se dois factos: a livre escolha de médico e hospital dentro dos convencionados, que a ADSE permite, é altamente apreciada pelos seus beneficiários; em segundo lugar, ao contrário do que possa ter ocorrido no passado, a ADSE é hoje bem gerida, publica relatórios de resultados, tem uma página Web transparente, amigável e útil e faculta informação de importância estratégica para a tomada de decisões. Tem vindo a reduzir os seus encargos com pessoal, contando hoje com menos de 200 funcionários e agentes e gasta pouco mais de 1,5% em encargos de administração.

Estas características recomendam que se aproveite o momento para converter a ADSE numa mútua de funcionários e reformados, gerida pelos trabalhadores, a exemplo do excelente subsistema de saúde que os bancários souberam criar, neste caso com serviços próprios de ambulatório e de hospitalização. O financiamento do Estado tem regredido de importância e o auto financiamento pelos beneficiários aumentado. O desconto no ordenado, proporcional ao seu montante, afasta a ADSE de um modelo de seguro, onde o financiamento teria que ser proporcional ao risco, deixando a descoberto os mais idosos, mais vulneráveis e certamente portadores de doenças mais dispendiosas. A partilha de risco seria solidária e aos poucos libertar-se-ia da parte pública, diluindo o argumento da diferenciação positiva de funcionários em relação ao contribuinte em geral, uma das críticas de mais difícil resposta. Uma mútua bem gerida poderia dispensar um sistema prestador de cuidados, mas deveria criar um modelo de gestão de saúde em cuidados primários, semelhante ao das unidades de saúde familiares, contribuindo para uma resposta integrada e holística. Caso se pretenda alargar o número de aderentes, poderia ser mutualizado o pagamento de taxas moderadoras, através de um fundo constituído para o efeito, em condições de liberdade de opção. Modelo existente desde há muito em França para a cobertura do “ticket modérateur”. Como se vê, a ADSE tem futuro.

Deputado do PS ao Parlamento Europeu

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