A segunda morte da jovem bailarina

Mais trágico do que uma mulher ter de recorrer ao aborto, é ter de morrer por causa dele.

Naquela altura, quase dois anos após o 25 de Abril, eu tinha dezassete anos e frequentava o único liceu “feminino” da cidade, que só então começava a receber rapazes, e apenas nas turmas do primeiro ano.

No liceu, ao nível das “ciências” — eu pertencia às “letras” —, destacava-se no meu ano a Carla, filha de família muito conservadora e rica. A Carla era também conhecida por ter uma irmã um ano mais nova, a Diana, de temperamento oposto. A Carla vestia de modo clássico, pouco ria, mal convivia com as colegas; a Diana era extremamente jovial, inclinada para as artes, a frequentar ballet e com resultados académicos muito inferiores aos da irmã.

Um dia, reconheci a Diana numa mota conduzida pelo namorado. Fiquei admirada: tendo uma mãe e um pai muito conservadores, não sabia o que pensar do que via. Mas gostei do ambiente de liberdade e alegria que parecia ir transportado naquela mota.

Tempos depois, soube-se no liceu que a Diana morrera.  A surpresa foi geral. O que teria acontecido? A história veio numa surdina que, afinal, ia bater a todos os ouvidos: engravidara, fizera um aborto — clandestino, é claro —, as coisas tinham corrido mal, esvaíra-se em sangue e em febre, sofrera muito até a morte tomar conta da sua juventude e da sua jovialidade. Naquela altura muitas de nós nem sequer sabiam ao certo o que pensar de um aborto, quanto mais clandestino. Para quem provinha de famílias muito conservadoras, a sexualidade era um assunto raramente abordado. Lembro-me de, poucos antes do 25 de Abril, em férias e afastada das colegas, me irritar profundamente um dia por ser tão boa aluna e não saber o que era um preservativo. Desesperada, tive a ideia de consultar um bom dicionário da casa. Decepção. O que encontrei foi algo do género: um preservativo é aquilo que preserva. Fechei o dicionário com raiva. Salvou-me a frequência de uma livraria “progressiva” no pós-25 de Abril, onde descobri um livro didáctico com informações de ordem sexual para adolescentes. Peguei no livro e, num misto de ousadia e vergonha — tinha aquela idade, era tão boa aluna e não sabia aquelas “coisas”? — dirigi-me ao balcão para o comprar. Ainda hoje tenho na mente a cara do empregado que me atendeu e que, para meu espanto, não esboçou qualquer gesto de recriminação. Em termos de informação sexual, em casa só podia contar com o silêncio e esperar a mentira. De tal modo que quando me veio a menstruação e a minha mãe se encarregou de me dizer apenas que isso não “acontecia” aos rapazes, achei simplesmente que me estava a mentir.

Avançando. Num pequeno passeio com algumas amigas da turma, falámos do que acontecera à Diana. Nenhuma de nós tinha ido ao funeral — que diriam os nossos pais? —, mas uma das amigas partilhou as informações que obtivera. Retive a ideia da sua morte lenta e em dor e, acima de tudo, a de que estava extremamente bonita no caixão, com um vestido especial de ballet.

Com as recentes alterações feitas à lei da interrupção voluntária da gravidez na sequência de propostas lançadas por um movimento denominado Pelo Direito a Nascer, pergunto-me o que faria hoje a Diana anti-autoritária de outrora, sabendo que é legal abortar até às dez semanas, mas sabendo também que, provavelmente, no hospital terá à sua volta um ambiente terrorista de modo a dificultar-lhe ao máximo o aborto. Imagino-a a ir a uma primeira consulta, ficar desesperada com as dificuldades encontradas e já não voltar a aparecer, recorrendo outra vez ao aborto clandestino e tendo o azar de cair em más mãos, que a empurram igualmente para a morte. Vejo-a então deitada num novo caixão, linda no seu vestido especial de ballet, tão morta como outrora.

Mais trágico do que uma mulher ter de recorrer ao aborto, é ter de morrer por causa dele.

Professora aposentada da UMinho (laura.laura@mail.telepac.pt)

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