Revolução democrática da justiça

Se a crise, a precarização dos direitos e o enfraquecimento das garantias são, entre o mais, o quadro que hoje conhecemos, ocorre perguntar: de que lado estão o Direito e os tribunais?

Vivemos um tempo de asfixiante fechamento de alternativas democráticas progressistas que tenham por objectivo melhorar as condições de vida dos portugueses.

Mas elas têm de ser encontradas, e têm de ser, ao mesmo tempo, superadas as políticas actuais que envolvem o empobrecimento do país e que fazem aumentar os níveis da pobreza generalizada das populações, que enfraquecem ou eliminam direitos que se julgavam escritos em pedra na CRP e que obedecem a tutelas estrangeiras executadas com a conivência servil do alto poder político, concentrado todo Presidente da República, Assembleia da República e Governo numa classe partidária de direita. Políticas que acarretam a perda da estabilidade mínima que é indispensável para planear a vida familiar, o desempenho profissional, a educação dos filhos, o amparo da terceira idade.

Este quadro asfixiante invade também uma área importante da vida colectiva o acesso ao Direito e à Justiça e é preciso buscar aí melhorias para a vida dos portugueses. Mesmo que seja uma ousadia utópica o único meio de lutar contra o transe urgente que proíbe os portugueses de desejar o seu bem-estar e a normalidade democrática (o “direito à felicidade” que se encontrava escrito na Declaração da Independência dos EUA).

Avancemos, pois, para essa ousadia, com algumas ideias:

1. A primeira um passo importante e decisivo seria a eleição dos juízes, pelo menos os juízes dos tribunais superiores, à semelhança dos juízes do TC, mas com listas apuradas pelo CSM, depois de aberto um concurso anual, para preenchimento de vagas (concurso aberto para juristas), cabendo a eleição à Assembleia da República. Conquistariam, assim, os juízes uma legitimidade democrática indirecta, que hoje lhes falta.

2. A segunda ideia seria a afirmação da politização dos juízes e do Direito e da judicialização da política, constituindo um factor de democratização da Justiça e contribuindo para o escrutínio pelos cidadãos dos juízes e dos políticos.

Permitir-se-ia, assim, tendencialmente, apagar o perfil histórico dos tribunais da era moderna, centrado ainda na divisão da justiça administrada pelos tribunais em justiça para as classes populares e justiça para os poderosos, Tribunais, aliás, servidos por juízes-funcionários, sujeitos a inspecções e classificações, em submissão ao Conselho Superior da Magistratura.

É quando se atinge a fase da Justiça dramática, de que falam alguns autores, em que são levados a tribunal pessoas ou personagens conhecidas da comunicação social, políticos, agentes económicos, entre o mais, de relevo no meio social, que se verifica a judicialização da política.

Convém, a propósito, recordar aqui que, entre nós, os tribunais passaram ao lado da Revolução de 25 de Abril de 1974, um processo revolucionário impulsionado entusiasticamente no terreno pelas massas populares. Na verdade, o sistema judiciário manteve-se intocado, os juízes continuaram a exercer as suas funções, o então Conselho Superior Judiciário sobreviveu e os presidentes dos tribunais superiores nada sofreram de imediato. Mesmo os juízes que estiveram implicados com o regime fascista deposto em 25 de Abril, sobretudo aqueles que serviram nos tribunais plenários de má memória e sofreram medidas de saneamento político, foram mais tarde reabilitados e regressaram ao exercício das suas funções.

3. A terceira ideia consistiria no empenhamento de todos na justiça estadual, com reforço dos meios, em especial, meios humanos, limitando-se ou abandonando-se as formas alternativas de resolução/composição não jurisdicional dos litígios ou conflitos, ou, no mínimo, pondo-se termo a este frenesim de busca dessas formas alternativas. Cumpra-se a CRP, que proclama solenemente que são os tribunais, órgãos de soberania, que administram a Justiça em nome do povo. Se é assim, pergunta-se, essencialmente, na justiça penal, na justiça fiscal e na justiça das contas, porque não nos demais ramos do mundo judiciário?

O crescente protagonismo social e político do sistema judicial e do primado do Direito, sem curar agora de saber se é de sinal positivo ou de sinal negativo, é um factor decisivo de vida colectiva democrática. E é um contributo para ultrapassar o conservadorismo a que aquele sistema tende sempre a inclinar-se. E que se revela numa incapacidade de acompanhar os passos mais inovadores da transformação social e política, muitas vezes sufragados pela maioria da população (veja-se o exemplo da jurisdição administrativa, com o Código de Processo nos Tribunais Administrativos a abrir o acesso mais alargado dos instrumentos processuais, para efectivação de direitos de liberdade e de direitos sociais, económicos e culturais).

Naquele protagonismo pode assumir um papel relevante o combate à corrupção e, de modo geral, aos crimes económicos e financeiros, os mais difíceis quanto ao apuramento da verdade e à identificação dos responsáveis/arguidos.

Se a crise, a precarização dos direitos e o enfraquecimento das garantias são, entre o mais, o quadro que hoje conhecemos, ocorre perguntar: de que lado estão o Direito e os tribunais?

Enfim, para concluir, não queiramos que as importantes e novas repercussões que a globalização económica e os ditames, por vezes ocultos, dos chamados mercados financeiros internacionais trouxeram ao fenómeno jurídico conduzam a que o próprio sistema jurídico corra o risco de vir a ser derradeiramente desconstruído, com efeitos perversos e em prejuízo dos cidadãos, dos seus direitos, liberdades e garantias que a CRP solenemente proclama.

Juiz-conselheiro jubilado

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