Fogo preso

Tito deixa-me sempre acabrunhado. Vem de fora, a mente fresca, não vê mais do que nós, mas a interpretação é diferente.

Numa semana, confessa Tito Zagalo, tornei-me céptico da recuperação, não da economia, mas do país. Por causa de dois discursos, o de Natal do primeiro-ministro e o de Ano Novo do Presidente. Soaram tão a falso e tão pouco convictos que me levaram a recuar do meu inicial optimismo.

Para o primeiro-ministro (PM) tudo corre pelo melhor, até o emprego, onde da noite para o dia se criaram 120 mil novos postos de trabalho, esquecendo os 100 mil que se perderam. O crescimento é animador para o PM, embora no ano findo o país tenha regredido em perto de 1,5%. O défice terá sido controlado com mais uma cobrança excepcional de impostos em dívida de 1,2 mil milhões de euros, irrepetível nos tempos mais próximos e incentivadora de menos receita fiscal futura. (Que bom teria sido ter prolongado, em Novembro, o período de perdão fiscal por mais três meses em 2014! Teríamos resolvido o problema dos 0,25 de défice acrescido no ano que se inicia.) Adiante! A dívida pública, soube-se agora, cresce 1,1 % a cada redução do défice de um ponto. Princípio de vasos comunicantes com perdas por viscosidade. O PM ignorou os professores a descredibilizarem o ministro, este a descredibilizar os politécnicos que tutela, universidades em perda de oxigénio, investigadores, engenheiros, economistas e gestores a emigrarem para as Américas, Áfricas e Europas. Não julguei que o país estivesse tão mal governado, por gente tão incompetente, ignorante e involuntariamente suicida, desabafa Tito Zagalo em noite chuvosa de fim de ano! No meio de toda esta desgraça, temos a Madeira a queimar centenas de milhares de euros em oito minutos de fogo! Em nome do marketing turístico.

Mas o pior foi o discurso do Presidente, acrescenta Tito, quando esperava energia crítica recebi complacência com a mediocridade governativa; quando esperava credibilidade para unir forças, recebi propostas de consenso votadas à rejeição liminar; quando esperava que o Presidente se defendesse de complicações supervenientes, vejo que ele se transmuta em apostador de risco.

Tens de entender, meu caro Tito, que o Presidente está prisioneiro de uma má solução da crise Portas, no Verão passado. Ao apostar em Passos perdeu o apoio do PS. As suas súplicas ao consenso embatem agora num muro. Apesar da fraca memória, os portugueses não esqueceram que o Presidente não apelou ao consenso na crise que deu lugar à vinda da troika. Pelo contrário, acirrou ânimos, referindo então termos chegado ao limite dos sacrifícios suportáveis. Os sacrifícios ainda haviam de ser bem piores daí para a frente. Como quer agora que o PS acorra ao chamamento para um consenso onde seria deglutido, quando as perspectivas eleitorais são as inversas de então?

Não podemos ignorar, Tito, que os mercados abriram em alta no Ano Novo e se reduziu a diferença entre os juros da dívida dos países mais endividados e os alemães. E até admitiremos, como plausível, uma emissão de dívida a juros próximo dos 5% ou menos, o que seria um bom sinal para o fecho pacífico do programa de intervenção. Tal significaria termos batido no fundo e estarmos a dar a volta, devidamente almofadados com apoio dos nossos aforradores e dos bancos, nesse encaixe. Nem tudo são más notícias. Meu caro, há momentos na vida política em que será melhor para os países que os ministros não apareçam nos ministérios, responde Tito. Os automatismos não têm só consequências funestas. O que não consigo vislumbrar são sinais de reforma, apenas mais cortes punitivos e mais impostos paralisantes. Se os mecanismos que geram despesa sem controlo, encostados ao Estado, sentirem que as melhoras são estáveis, aí disparam eles, de novo, forçando a despesa pública. A reforma dos municípios ficou pelas freguesias; queremos regiões mas é com distritos que organizamos a vida política; poderíamos reduzir o número de parlamentares, mas os partidos minoritários fogem disso como o diabo da cruz; deveríamos ter administração mais bem treinada, reduzida e responsável, mas desmantelámos o INA, aniquilámos quantitativa e qualitativamente as chefias, como se tivessem lepra, e destruímos institutos com vida responsável e autonomia financeira; tudo em nome de uma sanha ignorante e radical de destruição do Estado. Sem reformas entraremos em novo ciclo de desperdício assim que folgarmos. E pela frente temos meses de incerteza agravada por eleições e suas campanhas.

Atenção, alerta Tito, o PS tem de mostrar que pode ser um bom governo, não basta ficar sentado, à espera da sua hora. A aparência de cálculo leva a que o povo ache que é manha e perca o entusiasmo! O teu partido vai ter de galgar a tolerância simpática e passar ao entusiasmo contagiante. Se o virem apenas como o menor dos males, muitos ficarão em casa ou votarão irracionalmente, por rancor. Os eleitores têm de ver o caminho à sua frente, não basta que sintam o desagrado. Não se ganham eleições sem uma forte dose de ilusão, sejam amanhãs que cantam, seja confiança em governos alternativos. No país onde vivo, os trajectos eleitorais estão marcados por candidatos de que ninguém mais voltou a falar. Ou por terem falta de cabelo, ou por falta de altura, ou por terem ido à guerra ou por não terem ido à guerra, por muitas pequenas razões a corrente eléctrica não passou e o voto fugiu para o lado. Sabemos que um bom número de eleitores vota com a mão por cima do coração, com a carteira, entre o forro e a entretela. Mas o conforto da carteira depende da confiança.

Tito deixa-me sempre acabrunhado. Vem de fora, a mente fresca, não vê mais do que nós, mas a interpretação é diferente. Não poupa comentários agrestes, revelando intolerância perante erros conhecidos. Confesso-me sempre chocado com a sua desarmante dialéctica. Partiu de novo para ensinar na sua tranquila universidade, boas instalações, parques frondosos, ambiente de tolerância e de permanente estímulo. Que inveja!

Deputado do PS ao Parlamento Europeu

 
 
 

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