Fartura de fome

O Presidente devia lembrar-se de quão diferente era o contexto de gestão orçamental do fim do século passado, comparado com o actual.

Não há fome que não dê fartura. O Presidente da República, normalmente pouco falador e cada vez mais espaçado nas declarações públicas, com o São Martinho desdobrou-se em comentários; aproveitou o precário sol alentejano para comunicar.

Sobre o BES, ao contrário da assertividade com que, sem querer, ajudou a empurrar investidores incautos para a voragem, mostrou-se agora comedido, declarando não dispor de informação de valor acrescentado. Do entusiasmo contagiante do início do verão sobre a solvabilidade do banco, distinguindo-o do grupo, passou para a política da punição necessária. Uma política popular, o povo sempre adorou autos de fé.

Sobre Timor fez o que devia: criticou o comportamento das autoridades timorenses que parece nunca terem lido a sua constituição, desconhecendo o princípio da separação de poderes, mas recomendou que nada se rompesse nas relações entre estados. Estranho é que ninguém avisadamente tenha prevenido que isto se iria passar. Como é que uma cooperação entre ministérios e magistraturas pode pretender transformar em tema técnico de formação de quadros, uma função de soberania nacional? Como se tivéssemos aceite que a cooperação fosse tão longe, ao ponto de fornecermos os ministros a um país soberano. Colocámo-nos a jeito, só nos podemos queixar de nós próprios.

Sobre legionella, o Presidente disse o óbvio: era necessário estudar bem as causas do problema, actuar com cuidado e evitar o pânico. Elogiou o ministro da pasta, mas talvez tenha esquecido os peões de brega, Francisco George e outros, na volta à arena. Se não fosse a solidez, experiência e dedicação do nosso sistema de vigilância epidemiológica e dos homens e mulheres que o protagonizam, andaríamos às apalpadelas. Quando me lembro dos nossos liberais que pretendem privatizar ou devolver a Misericórdias parte do SNS como os pequenos hospitais distritais, ou delegar em privados funções que são públicas, pergunto-me onde estaríamos hoje se tivéssemos perdido o forte poder regulador e o privilégio de execução prévia (primeiro cumpre-se, depois discute-se) que perdura na legislação das autoridades sanitárias, em matéria de defesa da saúde pública. Como se esperava, nenhum dos tenores da privatização da saúde teve sequer a coragem de abrir a boca nesta emergência. Quando a nível ministerial já se falou, antes do tempo, em crime ambiental, espera-se que não surjam depois os corifeus da direita a ilibar o incumpridor, por relaxamento da inspecção.

O comentário mais picante foi dirigido a Ferro Rodrigues, sem o nomear: Uma acrimónia velha de quarenta anos, agora alegadamente servida fria. A verdade é que a comida não estava fria mas intragável. Ferro lamentou a falta de bom senso ao mais alto nível e referir-se-ia, provavelmente, ao facto de o Presidente passar por cima dos calendários críticos que vai enfrentar, armando-se apenas de uma couraça legalista (não necessariamente de cariz constitucional, como Marcelo bem fez notar). E pensando que devolvia o boomerang, lembrou que fora com os votos da esquerda e contra a direita de então, que o PS havia feito aprovar uma lei eleitoral que fixava as eleições legislativas entre 15 de Setembro e 15 de Outubro. É verdade. Mas o Presidente devia lembrar-se de quão diferente era o contexto de gestão orçamental do fim do século passado, comparado com o actual. Nessa altura, o orçamento era matéria doméstica, hoje é assunto europeu, o “semestre de Bruxelas” impondo concordâncias prévias, depois de vistoria das propostas orçamentais. Manter eleições em Setembro-Outubro será lançar às urtigas um orçamento virtual de um governo terminal. Com a agravante da perda de poderes presidenciais de dissolução, em fim de mandato do actual e início do próximo, cada um em seis meses sucessivos, ou seja um ano. Com a perspectiva de maioria simples no horizonte, um presidente com poderes diminuídos pouca ou nenhuma magistratura de influência pode exercer para convencer vencedores e vencidos a uma união patriótica. O que, por ausência de acordo, levará um governo terminal a perdurar em vida artificial, sem respiração assistida nem monitorização permanente, até à falência de órgãos vitais. Sem excluir que uma prolongada deterioração possa conduzir à perturbação de novas eleições legislativas, assim que o novo presidente assumir a plenitude de poderes de dissolução, se outra não for a solução no quadro político existente. Eis como uma solução legalista corre riscos desnecessários de desestabilizar o futuro próximo. Criticar os seus críticos com o argumento de “não terem feito o trabalho de casa”, julgando impor superioridade moral, faz tanto sentido como exigir a um doente pobre mas não isento, que pague as taxas moderadoras da saúde, por a lei assim o determinar. O doente deixará de frequentar o hospital.

Professor universitário reformado

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