Utopias redentoras e desespero colectivo

O salto para a utopia redentora, mesmo que esta se resuma quase só ao modo e não à substância da acção política, é fruto de um elevado grau de desespero colectivo.

“Não acreditar no povo é ser ateu em política.” Esta frase, da autoria de Victor Hugo, proferida no contexto de uma disputa travada com uma das mais eminentes figuras liberais da época, François Guizot, é de uma extraordinária acuidade.

A sobrevivência do regime democrático depende da natureza da relação estabelecida entre representantes e representados no plano estritamente político e entre as distintas elites e o conjunto geral dos cidadãos num âmbito mais vasto. Sempre que a confiança entre uns e outros se degrada surgem tais dificuldades que acabam por questionar a viabilidade da solução democrática. Nessas ocasiões gera-se uma incompreensão de tal ordem que tudo o que releva do domínio da reivindicação popular é percebido como populismo e tudo quanto decorre do exercício de funções liderantes é imediatamente identificado como uma ilegítima promoção dos privilégios de uma suposta casta dirigente. Para usar as palavras de Victor Hugo, estaremos perante um duplo ateísmo político: nem o povo acredita nas elites, nem tão pouco estas projectam qualquer expectativa em relação àquele. É esse, de algum modo, o drama que atravessa as nossas sociedades democráticas no tempo presente.

Em nenhum outro país esse problema se manifesta tão exuberantemente como em Espanha. Por razões diversas, entre as quais avultam os fenómenos da corrupção e das reivindicações nacionalistas periféricas, os espanhóis têm vindo a afastar-se dos dois grandes partidos em que tradicionalmente se reconheciam e em torno dos quais se processava o funcionamento da alternância democrática. Agora, a crer nas sondagens, parecem estar seduzidos por duas novas propostas políticas, uma à esquerda e outra à direita, que têm em comum uma proclamada ruptura com aquilo que designam como uma forma tradicional e esgotada de fazer política. Essa vontade adâmica, e como tal simultaneamente ingénua e pretensiosa de reinvenção absoluta da realidade, só dispõe de condições de sucesso porque se quebrou um vínculo de confiança imprescindível para a manutenção de um espaço público ordenado em função de clivagens programáticas consistentes. O salto para a utopia redentora, mesmo que esta se resuma quase só ao modo e não à substância da acção política, é fruto de um elevado grau de desespero colectivo. Esse desespero decorre, em grande parte, da actual crise económica e social mas parece ter raízes mais profundas. Volvidos quase quarenta anos sobre o período da transição democrática que permitiu o reconhecimento das autonomias nacionais e regionais, possibilitou a plena integração do país na União Europeia e originou um extraordinário processo de modernização cultural e económica, a Espanha parece confrontada com uma crise de sentido do seu próprio projecto político nacional.

Só isso pode justificar o súbito deslumbramento por partidos com a natureza do Podemos de Pablo Iglésias e do Ciutadans de Albert Rivera. Nenhum destes partidos brilha pela profundidade e pelo rigor do pensamento político, cultivam ambos uma conveniente ambiguidade ideológica e dependem excessivamente do carisma dos seus líderes. Apresentando-se simultaneamente como produtos e promotores de uma forma mais avançada de democracia participativa, muito ligada à explosão das redes sociais, acabam curiosamente por desvalorizar aspectos fundamentais do confronto político próprio de sociedades pluralistas e abertas. Comecemos por analisar o caso do Podemos. Todo o seu discurso político assenta na descrição de um confronto insuperável entre as massas populares e a “casta“, assistindo a um dos lados todas as virtudes e ao outro os mais repugnantes defeitos, e na explanação de uma teoria simplista que recusa a clivagem esquerda-direita e rejeita qualquer categoria doutrinária mais densa. Os fundadores e principais dirigentes do Podemos provêm quase todos de movimentos da extrema-esquerda anti-capitalista mas recorrem agora a uma linguagem que tem tanto de asséptico no conteúdo como de violento na denúncia. Apresentam-se a eles próprios como portadores de uma mensagem pós-ideológica, que se poderá filiar nos grandes movimentos regeneradores e salvíficos que se manifestaram por diversas vezes na história do Ocidente mas que os afasta da herança directa da modernidade política europeia, incluindo nesta a própria ideia marxista. No fundo, o que faz a força de uma formação como o Podemos é a sua capacidade de responder a uma vontade de purificação redentora agudizada pelo ambiente de profunda crise social prevalecente. Ao analisar desta forma tão relevante fenómeno político não pretendo minimizar a importância das razões que lhe subjazem, como não viso outro tanto apoucar as motivações de quem genuinamente acredita na bondade deste projecto. Conheço pessoalmente Pablo Iglésias e tenho por ele estima e consideração.

Já no caso dos Ciutadans, formação política de centro-direita com origem na Catalunha e constituída inicialmente por um conjunto de catalães anti-catalanistas (no sentido de serem contrários ao nacionalismo catalão), estaremos perante uma tentativa de renovação da imagem da direita espanhola. Essa renovação não parece assentar numa sólida reconversão política, antes aparenta querer fundar-se numa significativa operação de marketing eleitoral. Albert Rivera recorre também à astúcia da instalação numa zona de relativa ambiguidade programática procurando suscitar a adesão de um eleitorado desiludido com o PP e pouco propenso a confiar no PSOE. Rivera representa o estereótipo perfeito de uma liderança pouco dada a sérios compromissos no plano doutrinário. A sua leveza parece, aliás, ser momentaneamente a sua força.

Constituiria um grave erro pensar que esta situação resulta apenas da idiossincrasia espanhola. Pelo contrário, ela constitui apenas uma manifestação mais clara de uma tendência detectável em quase toda a Europa.

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