Uma campanha de protesto da CDU mas só com parte do país real

Por mais que Jerónimo recuse, a campanha da coligação PCP/PEV fez-se com base num homem só. O alvo central da mensagem foram os reformados, que continuam a ser a alavanca eleitoral da CDU, e o do ataque foi o PS. Há muita animação nas ruas, que são as sondagens preferidas do líder comunista.

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Daniel Rocha

“Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer/ Qualquer coisa que eu devia resolver/ Porquê, não sei/ Mas sei/ Que essa coisa é que é linda”. Os últimos versos de Inquietação, de José Mário Branco, ouviram-se muitas vezes nos momentos musicais que habitualmente antecedem os comícios da CDU. Esta e outras (eternas) músicas de intervenção continuam, 30 e 40 anos depois, a animar os espíritos à esquerda.

Jerónimo de Sousa pediu insistentemente aos militantes e apoiantes que tenham em conta a “inquietação” em que vivem, que olhem para o que foi a sua vida nos últimos anos, para a luta que a CDU fez a este Governo (e em especial para a que o PS não fez), e no domingo, no momento de julgar, decidam o seu voto com base na conclusão a que chegarem. Depois dos sucessivos escândalos de corrupção envolvendo políticos, a coligação PCP/Os Verdes tentou marcar a diferença apregoando em todas as intervenções que os seus deputados são gente séria e que não está na política para se servir, mas para servir os portugueses.

Mais do que os partidos do Governo, o PS tornou-se, frequentemente, o alvo a abater por Jerónimo. Havia que combater o voto útil de protesto, mostrando o que os socialistas não fizeram (combater a direita) e não vão fazer (governar a favor do ‘povo’, como o líder comunista gosta de dizer).

Esse ataque foi de tal forma forte que vozes se iam levantando a pedir outra estratégia. Só algumas, porque nas arruadas os militantes mandavam calar quem pedia que se batesse menos em Costa. Deve ter resultado, porque Jerónimo amaciou o discurso nos últimos dias, talvez percebendo que ainda pode ter uma palavra a dizer no domingo à noite. Não terá havido contacto directo com Costa, mas não são de excluir trocas de impressão com outros dirigentes dos dois lados. Garante não enjeitar responsabilidades governativas, mas coloca sempre a bola do lado do PS, que é quem tem que ceder em alguns temas.

Houve, porém, uma lacuna de fundo na campanha da CDU. A coligação que todos os dias repetia aos apoiantes que é a única com palavra, que na Assembleia da República faz o que ali, no terreno, cara a cara, promete aos eleitores, e que voltará sempre que preciso for ao local – e não apenas em campanha, como os outros – afinal não andou no país real.

Com excepção de uma visita a uma exploração leiteira, em Coimbra, e à concentração junto ao portão do Alfeite para início de uma marcha, não houve visitas nem saídas de fábricas, nem idas à lavoura, a um porto de pesca, a uma mina, uma metalurgia, a um estaleiro naval, a uma festa popular.

Existiram, sim, almoços com reformados e pensionistas – não admira, afinal são pelo menos 3,5 milhões de eleitores – para quem Jerónimo dirigiu a maior fatia dos seus discursos. Idosos de classe média baixa e baixa, que vivem esticando a pensão até ao fim do mês e alguns desempregados. Foram eles que encheram pavilhões e associações em almoços ou jantares, bibliotecas e anfiteatros em comícios, e ouviram o líder da CDU falar sobre o futuro incerto da Segurança Social e das suas pensões. Em Beja, por exemplo, dramatizou o discurso, falando directamente ao coração dos idosos, em quem colocou o ónus da responsabilidade de não votarem contra si próprios e votarem para defender o futuro dos filhos e dos netos.

Metódicos e algo conservadores na organização das actividades de campanha, os comunistas e os ecologistas deram o palco sempre a Jerónimo. Nos comícios, falava o cabeça de lista pelo distrito sobre questões locais, e depois Jerónimo com uma abordagem nacional. É ele o mais aplaudido, é quando ele fala que todos se calam. Heloísa Apolónia, d'Os Verdes, a segunda figura da coligação e candidata por Setúbal, apareceu em locais importantes, como Faro, Lisboa, Almada e Porto. Bem Jerónimo pode recusar que seja uma campanha de um homem só, que isso será sempre negado pelas evidências.

Acompanhado por uma pequeníssima comitiva de três assessores (duas de imprensa e o assessor parlamentar que coordena e escreve os discursos de Jerónimo, fruto de um trabalho de equipa ) e a equipa multimédia do partido, Jerónimo tentou dosear o esforço da campanha, que se intensificou nestes últimos dias. Concentrou as duas, no máximo três acções diárias, a partir do almoço. Arrancou constipado para a campanha oficial e isso retirou-lhe resistência. A sua ausência da marcha em Lisboa e em Almada foi notada entre os militantes e apoiantes, que o endeusam.

À sua chegada a qualquer lado há um bruá típico. Faz sucesso na rua, como se viu nas duas arruadas no Porto. Distribuiu apertos de mão e beijos, abraços e sorrisos. Mesmo em zonas eleitorais difíceis – e onde há uns anos se virava a cara e se vociferava contra os comunistas. Nisso Jerónimo tem razão: as sondagens não fazem jus a essa aceitação da CDU.

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