Seria bom que os nossos governantes dedicassem um pouco do seu tempo a ler Michael Sandel

A democracia é incompatível com um nível de mercantilização social gerador de um aprofundamento radical das desigualdades, diz este professor.

O primeiro-ministro espanhol Mariano Rajoy, numa entrevista concedida a semana passada a alguns dos principais jornais europeus pela ocasião da passagem do segundo aniversário sobre o momento em que iniciou funções, defendeu enfaticamente a necessidade da preservação do Estado providência europeu. Curiosamente, assinalou a importância histórica deste modelo de organização social e realçou o seu contributo para a singularização da Europa no mundo.

Reconhecendo pragmaticamente a necessidade de garantir a sustentação económica desse mesmo Estado providência, pugnou pela aplicação de políticas empenhadas na promoção do crescimento e apelou à concretização de uma orientação europeia preocupada com a satisfação de tal objectivo. Rajoy lidera um dos partidos de centro-direita mais conservadores da Europa que foi há não muito tempo dirigido pelo ultraliberal José Maria Aznar. Contudo, isso não o impede de produzir um discurso político muito diferente daquele que tem caracterizado o actual Governo português. Em si mesmo este fenómeno revela o grau de extremismo ideológico a que a presente maioria parlamentar chegou. Tal circunstância tem consequências muito perniciosas quer no plano estritamente interno, quer no âmbito do relacionamento com as instâncias europeias e os demais países membros da União Europeia. Aquilo que até há bem pouco tempo pareceria impensável constitui hoje uma realidade: o PSD está à direita dos conservadores espanhóis.

Na mesma altura em que Rajoy concedia essa entrevista um eminente professor de Filosofia Política da Universidade de Harvard, Michael Sandel, visitava Madrid com o intuito de apresentar o seu último livro O que o dinheiro não pode comprar. Os limites morais do mercado. Nessa obra o filósofo norte-americano sustenta uma tese muito simples e muito poderosa: a democracia é incompatível com um nível de mercantilização social gerador de um aprofundamento radical das desigualdades. Estamos perante uma questão central do debate político contemporâneo. Vários outros autores, oriundos sobretudo da área do pensamento económico, sustentam o princípio de que as desigualdades de condição e de rendimento se podem revestir de inequívoca utilidade se concorrerem para um maior e mais rápido desenvolvimento das sociedades. Nessa perspectiva, o mais importante seria o crescimento genérico da riqueza produzida numa determinada comunidade, independentemente da forma como se procederia à respectiva distribuição. Tal tese alicerça-se na confiança de que os menos favorecidos acabariam por beneficiar do aumento global dessa riqueza comunitária. Michael Sandel preconiza uma outra posição: para ele a questão da justiça distributiva é absolutamente determinante já que constitui uma condição imprescindível para a plena afirmação de uma sociedade democrática. Para este autor o problema da desigualdade coloca-se muito para além da questão da eliminação da pobreza absoluta – tem que ver com a necessidade de preservação de uma noção comum de cidadania. Se o fosso entre ricos e pobres se acentuar excessivamente as pessoas tenderão a viver vidas cada vez mais separadas, pondo em causa a permanência de um espaço público imprescindível à convivência democrática. Uma sociedade em que os ricos vivam em condomínios fechados, recorrendo a hospitais privados e enviando os seus filhos para escolas elitistas, e onde os pobres recorram à oferta pública nas mais diversas áreas deixa de ser uma sociedade verdadeiramente democrática. O que Michael Sandel diz é algo de uma enorme actualidade: a absoluta mercantilização da vida gera desigualdades relativas que põem em causa o essencial do próprio património democrático liberal do Ocidente.

A discussão deste tema reveste-se de uma grande importância na actualidade nacional. Numa altura em que assistimos a um extremar preocupante de posições políticas importa relembrar que a opção pela moderação não significa uma abdicação da firmeza no domínio da fidelidade a alguns princípios doutrinários fundamentais. Estou mesmo certo que a conciliação entre a moderação discursiva e a firmeza doutrinária é imprescindível para o sucesso de uma linha de orientação política empenhada em salvaguardar aspectos essenciais do modelo de organização política, económica e social que caracteriza a Europa desde os tempos do pós Segunda Guerra Mundial. Portugal, com um atraso que o circunstancialismo histórico explica, acabou por absorver este modelo europeu, com todas as consequências positivas daí advenientes. Ora, o que o actual Executivo pretende levar a cabo numa área tão importante como a educação põe em causa um património até agora consensualmente estabelecido. Na verdade, a opção pela escola pública como matriz identificadora do modelo de educação prevalecente decorre de uma determinada concepção de sociedade inspirada nos mais lídimos valores democráticos e liberais. Contrariamente ao que preconizam os defensores de uma visão um pouco epidérmica do liberalismo, a escola pública contribui decisivamente para a afirmação do pluralismo político, doutrinário e axiológico. Senão vejamos: uma sociedade onde prevalecesse a oferta privada no domínio educativo estaria condenada a uma guetizacão nesse plano que, certamente, concorreria para a diminuição da liberdade individual dos educandos. O princípio da liberdade de escolha das famílias acabaria por conduzir a uma espécie de pequena tirania sobre os indivíduos em concreto, com dramáticas consequências para o espaço público de participação e de discussão democráticas.

Contrariamente ao que um neoliberalismo de pacotilha proclama o Estado é muitas vezes promotor de independência, liberdade e autonomia. Para isso precisa de ter os recursos necessários que só uma sociedade dinâmica e uma economia produtiva proporcionam. É justamente por essa razão que é necessário promover simultaneamente o incentivo à livre iniciativa individual e a uma presença adequada da instância estatal. No fundo voltamos a apelar ao melhor da tradição social-democrata ocidental. Um conservador espanhol, líder de um partido conotado com uma tradição profundamente direitista no plano europeu, é aparentemente capaz de perceber isto mesmo. Um ministro da Educação português com estágio político juvenil na extrema-esquerda parece não perceber a importância do que está em causa. Seria bom que os nossos governantes dedicassem um pouco do seu tempo a ler Michael Sandel. Talvez isso contribuísse para que se libertassem da doença infantil de que padecem.

 
 
 

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