Os mercados também votam?

É esta gente que detém a maior parte das obrigações dos estados e das dívidas privadas dos cidadãos ou das empresas.

Aprende-se precocemente nas faculdades de Direito, que não se deve utilizar conceitos, sem primeiro os definir. Mas não faltam exemplos comprovativos, que esta prudente pratica não é particularmente seguida. O caso mais comum deste inconveniente hábito é a noção de mercados: “os mercados são instáveis”; “os mercados estão nervosos”; “este governo é ou não do agrado dos mercados “, são expressões utilizadas, como se estivéssemos a falar de algo que se saiba exactamente o que significa.

Até aos finais da década de 70 do século passado, os bancos eram por excelência a fonte dominante do capital alheio. Em alternativa ao financiamento dos próprios bancos, as grandes ou mesmo as pequenas empresas, poderiam recorrer às bolsas, negociando as suas acções. O comprador sujeita-se a ganhos ou perdas decorrentes do bom ou mau desempenho da empresa em que investiu. Estes seriam os “mercados” tal como eram entendidos no século passado.

Com a revolução das tecnologias de informação, os mercados da dívida, viram uma oportunidade de criar intermediários que se especializassem em partes das actividades tradicionais da banca. Com a vantagem dos empréstimos deixarem de aparecer no balanço dos bancos. Em vez disso, a dívida tornava-se um título financeiro – uma obrigação devida pelo mutuário (devedor) - e que agora era propriedade directa do investidor individual ou institucional. No início do nosso século, começou então o negócio da “titularização”. O que é isto? É a junção de muitos títulos de débito mais pequenos, para formar novos títulos de débito maiores, como hipotecas, empréstimos para comprar automóveis ou electrodomésticos, dívidas dos cartões de crédito das pessoas etc.. Estes títulos de dívida são embalados, cortados em tranches, avaliados por uma agência de notação (rating) e depois vendidos a um novo conjunto de investidores. (Félix Martin).

Confuso? Não fique. Só significa que o real detentor, por ex., da dívida do seu cartão de crédito, afinal não é o banco emitente do cartão, mas um fundo que até pode estar sediado numa offshore ou num país conivente. Ao fim ao cabo, uma entidade apátrida, que comprou a sua dívida, incluída num desses pacotes. Preocupado? Talvez seja razoável que deva ficar. O que em resumo descrevemos é apenas e tão só isto: Os estados soberanos e o sistema bancário tradicional, que presuntivamente deveria ser credível e fiável, deixaram – parece que irremediavelmente – de controlar e regular o sistema financeiro mundial. O mais que têm feito, sempre que alguma coisa corre mal aos bancos institucionais (os que titularizaram os créditos nos tais “fundos” e os primeiros responsáveis pela desintegração financeira de 2008) é injectar o dinheiro dos impostos dos cidadãos nos bancos, sob o pretexto que “são grandes demais para caírem”. E por aqui se ficam.

O poder que a estes “mercados” foi conferido pelos estados é tal, que Mário Monti - ex-funcionário do FMI e ex-primeiro ministro de Itália (num governo não eleito) – não se coibiu de afirmar publicamente que “aqueles que governam não podem permitir-se estar completamente limitados por parlamentares” (in Der Spiegel – Agosto 2012).

Melhor que isto, a roçar o bizarro, só a justificação da supremacia dos mercados sobre o voto dos cidadãos, dada, em 1998, por Hans Tietmeyer, presidente do Deutsches Bundesbank, que elogiou os governos por preferirem “o plesbicito permanente dos mercados globais” em detrimento do “plesbicito das urnas de voto”. A justificação é que os mercados globais são mais democráticos que as eleições parlamentares, uma vez que o processo de votação decorre neles, permanente e globalmente, e não apenas de quatro em quatro anos, confinado aos limites de um estado-nação (citado por Slavoj Zizec).

Posto isto, afinal o que são os “mercados” na realidade? Os mercados são um sistema propositadamente complexo e obscuro de especulação financeira, (a complexidade é parte inerente do negócio) operada especialmente através de fundos de valores mobiliários. Nestes fundos de investidores, participam entidades institucionalmente relevantes e os fundos soberanos dos estados com excedentes de liquidez, mas também participam meros especuladores e, pior ainda, entidades meramente aplicadores de dinheiro obtido através de actividades ilícitas. Boa parte destes fundos funciona de facto como um sector bancário-sombra. Isto são os mercados.

E é esta gente, que detém a maior parte das obrigações dos estados e das dívidas privadas dos cidadãos ou das empresas. Pusemo-nos a jeito.

Jurista

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