Democracia adiada

O PSD atreveu-se a deixar praticamente de fora da sua direcção as mulheres. E a adiar uma democracia de maior qualidade.

Sentada no camarote destinado ao PÚBLICO, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, no encerramento do XXXV Congresso do PSD, houve um momento em que pensei ter entrado numa máquina do tempo e viajado até ao Portugal de há mais de vinte anos. Aconteceu quando foi chamada a nova direcção que acabava de ser eleita. O sentido de desfasamento foi crescendo gradualmente enquanto os nomes eram ditos em cascata e os novos dirigentes subiam ao palco para se sentarem nas mesas dispostas em anfiteatro.

E só minutos depois, quando Passos Coelho fazia o discurso de encerramento, é que racionalizei a sensação de estranheza que me tomara. Olhando a direcção sentada por de trás do líder, era notório que o grupo se compunha quase só por homens e que, para além de Teresa Leal Coelho, num bonito tailleur cor-de-rosa, era preciso pouco mais do que os dedos das duas mãos para contar o total de mulheres ali sentadas, no meio de quase uma centena de novos dirigentes. É que das 89 pessoas que integram os três órgãos de direcção política do PSD apenas 13 são mulheres.

Mais concretamente, o PSD elegeu dez mulheres para os 70 lugares do conselho nacional. Já entre os 18 membros da comissão política há três mulheres: Elsa Cordeiro, Maria da Conceição Pereira e Teresa Leal Coelho, que é também vice-presidente do partido e, nessa qualidade, é a única mulher a ter assento nos nove lugares da comissão permanente.

A estranheza desta baixa representatividade das mulheres na direcção do PSD choca, tanto mais quando se pensa que este é o único partido que em Portugal foi presidido por uma mulher: Manuela Ferreira Leite. E continua a chocar quando se pensa na preocupação real com a representação de género no consulado de Marcelo Rebelo de Sousa, quando o PSD, recusando embora introduzir quotas de géneros nas listas eleitorais, assumiu que o equilíbrio paritário de género nos órgãos de soberania e nas direcções dos partidos deveria ser conseguido apenas com base em critérios de mérito e numa gestão sensata – em vez de construída com incentivos obrigatórios como as quotas.

O PSD acabou por ser ultrapassado pela realidade política em 2006, quando é aprovada pela Assembleia da República, sob proposta do Governo socialista de José Sócrates, a lei da paridade que introduz a quota mínima de 33% de representação de género. Isto, quando o PS tinha também este patamar como limite para os órgãos internos, depois de ter estado nos 25% desde o tempo da direcção de António Guterres.

Ora, quase vinte anos depois desse debate, ver uma direcção do PSD reduzida a uma representatividade tão escassa de mulheres (a raiar os 15%) não pode deixar de causar estranheza e mal-estar. E torna a pergunta obrigatória: por que razão é possível que a direcção de um partido de governo num Estado-membro da União Europeia possa ser assim tão sexista e misógina? Será que o PSD não tem militantes mulheres? Será que as mulheres militantes do PSD são incapazes e desprovidas de mérito para integrar a direcção ao lado dos homens? Será que o país se revê nesta segregação de género, quando em diversos sectores da sociedade a busca de equilíbrio paritário é uma realidade inquestionável?

Indicador de que de facto Portugal continua a ser um país machista é também o resultado do relatório da Comissão Europeia sobre a disparidade salarial de género nos 28 Estados-membros, divulgado dias depois do fim do congresso do PSD (PÚBLICO, 01/03/2014). É que a diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal, em 2012, aumentou de forma acentuada e atingiu os 15,7%, quando, em 2011, foi de 12,5%. Aliás, este aumento da diferença salarial entre homens e mulheres tem-se agravado em Portugal ao longo do período em que o assunto tem sido monitorizado pela Comissão Europeia, como já abordámos neste espaço em relação ao relatório do ano passado (PÚBLICO, 21/12/2013). E se, em 2007, as mulheres ganhavam menos 8,5% do que os homens, em 2011 esta diferença era de 12,5%, para disparar, em 2012, para 15,7%.

O problema é tanto mais grave quanto o clima social e político que Portugal vive é tendente a facilitar o desinvestimento nesta e noutras discriminações de género a que as mulheres estão sujeitas. Pelo contrário, podem agravá-la e fazer das mulheres as principais vítimas da crise, e não só ao nível laboral. Em termos globais, a austeridade e a tendência para o economicismo podem levar as pessoas a aceitar o retrocesso que significa pensar-se que há direitos de primeira e direitos de segunda, a conformar-se com uma hierarquia de prioridades entre as condições materiais de vida e os direitos individuais, uma atitude que pressupõe a menorização de direito à diferença e à não discriminação. Sobretudo num país de cultura sexista como Portugal. Provavelmente por causa deste ambiente cultural, o PSD atreveu-se a deixar praticamente de fora da sua direcção as mulheres. E a adiar uma democracia de maior qualidade.
 

   

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