Congresso do PS: unificação e viragem à esquerda

Dizer-se, como se tem dito, que Costa foi “o número dois de Sócrates” é dizer muito pouco sobre o real poder de Costa dentro do aparelho partidário.

O congresso do Partido Socialista do passado fim-de-semana tinha que ser o momento da reunificação do partido. O PS tinha que mostrar, para o exterior, que estava novamente unido, porque isso significava mostrar-se politicamente forte e, assim, eleitoralmente mobilizador. Foram muitas as vozes que duvidaram de que isso fosse possível, não só devido à prisão de José Sócrates, que poderia prejudicar António Costa, mas também porque se entendia que a fractura entre os apoiantes de Costa e de Seguro podia não ser sanada, deixando trincheiras abertas para o futuro.

No entanto, o objectivo da reunificação foi claramente cumprido. Por um lado, se Costa havia sido apoiante de Sócrates na luta pela liderança do partido, em 2004, e seu ministro da Administração Interna, entre 2005 e 2007, a verdade é que o novo líder socialista teve sempre peso próprio dentro do partido. A sua carreira política fez-se em simultâneo com a de José Sócrates, mas não dependente deste. Dizer-se, como se tem dito, que Costa foi “o número dois de Sócrates” é dizer muito pouco sobre o real poder de Costa dentro do aparelho partidário. Costa tem autonomia e autoridade dentro do PS e provou-o agora: não pareceu ter sofrido com os recentes acontecimentos. Costa conseguiu, aliás, que Mário Soares e Jorge Sampaio aparecessem no final do conclave para mostrar o seu apoio ao novo líder – não é mérito ao alcance de todos e dá um sinal de reunião da família socialista.

Quanto à conciliação entre seguristas e costistas, a história do PS diz-nos que as suas disputas internas costumam ser resolvidas com eficiência, sendo que as facções derrotadas são rapidamente absorvidas pela tendência vencedora. Lembremo-nos, a título de exemplo, que, na disputa que opôs Guterres e Sampaio, em 1992, Ferro Rodrigues ou o próprio Costa eram sampaístas convictos e, ainda assim, uns anos depois, foram importantes ministros dos governos guterristas. Da mesma forma, dois dos nomes que se revelaram peças-chave dos governos socratistas, Vieira da Silva e Augusto Santos Silva, não apoiaram Sócrates na sua corrida à liderança do PS, colocando-se antes ao lado de Manuel Alegre. Aliás, Costa, apoiante de Sócrates, teve agora o forte apoio de Alegre. Na realidade, o PS tem sido, ao longo dos tempos, capaz de ser unificador e pacificador das suas facções internas, em grande medida devido ao facto de estas não assentarem em divergências ideológicas profundas, mas antes em diferenças de personalidade e estilo dos candidatos, que são mais facilmente ultrapassáveis. Não se deve esperar nada de muito diferente desta vez: os seguristas serão naturalmente absorvidos.

Mas será que este congresso também deveria ter sido o momento para apresentar novas propostas políticas, para além daquelas que constam da Agenda para a Década, nomeadamente para concretizar mais a posição sobre a dívida pública? Sabia-se que não seria. O novo líder do PS já havia dito que o cenário macroeconómico iria ser estudado por um grupo de economistas e que as propostas concretas sobre finanças públicas só chegariam na Primavera, quando fosse apresentado o programa eleitoral do PS. Ninguém esperava que Costa assumisse agora a defesa da reestruturação da dívida, que prometesse a reposição integral dos salários em 2016, ou que garantisse o seu contrário – provavelmente, se as apresentasse agora e as viesse a rejeitar mais tarde, isso teria um impacto negativo nos eleitores.

No entanto, por muito importantes que sejam estas questões, a linha ideológica de um partido não se vê apenas nas medidas relativas ao equilíbrio do défice e ao pagamento da dívida. Os valores normativos que irão nortear a acção política que se irá desenhar e as linhas gerais dessa acção são importantes para percebermos o que este PS promete – e isso já ficou mais claro neste congresso.

Costa vincou as ideias de que os compromissos com o serviço da dívida não são mais importantes do que os compromissos do Estado com os cidadãos ou de que a moeda única tem que funcionar para todos os países; rejeitou a lógica do empobrecimento própria da política austeritária; colocou a ênfase na necessidade de o Estado se assumir como um agente económico, cuja intervenção é essencial para garantir crescimento e emprego, na prioridade da luta contra as desigualdades e a pobreza, sobretudo entre crianças e jovens, e na revalorização do trabalho e da concertação social; afirmou que o PS não se coligaria com os partidos à sua direita, com os quais disse haver uma clivagem ideológica e até civilizacional, e que não deixaria de procurar o diálogo à esquerda; afirmou que o Estado não pode impor um modelo de família e que deve dar nova força ao combate à violência doméstica. Tudo isto constitui uma base ideológica para uma futura acção política. E, se nada disto é novo, há algum tempo que o PS não afirmava todas estas ideias de forma conjunta e tão veemente. Assumir com clareza este diagnóstico, esta estratégia e estes valores aponta, assim, para uma viragem à esquerda.

Politóloga, Instituto de Políticas Públicas TJ-CS e UBI

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