A nossa democracia

O dr. Cavaco e o dr. Passos Coelho deviam pensar duas vezes no que fazem.

Depois de, pelo menos, 30 anos de guerra civil (1821-1851), Portugal conseguiu estabelecer um regime liberal, que durou à volta de 40 anos. No fim do século XX, apesar de algumas tentativas autoritárias, Portugal também conseguiu estabelecer uma democracia “à europeia”, com dinheiro emprestado. Não admira que muita gente hoje se comece a preocupar com o futuro político do país.

Será possível com os 20 ou 30 anos de “austeridade”, ou seja, de empobrecimento, que do alto da sua sapiência o dr. Cavaco nos prometeu, conservar um regime apesar de tudo benigno e tolerável? Ou, se uma tradição já velha prevalecer, virá agora um período de violência e desordem, a que uma espécie qualquer de autoritarismo tarde ou cedo acabará por pôr fim perante o alívio e o júbilo dos portugueses?

A dúvida é lógica e até prudente. Tanto mais que a “Europa” dos fundadores, que foi a esperança e o sonho de três gerações de ingénuos, manifestamente se desagrega e abandona os princípios que desde o começo tinham sido os seus: os direitos do homem, o Estado Social e a supremacia da lei. Como iremos nós, sem a “solidariedade” e o apoio de Bruxelas, resistir às forças que de dentro e de fora promovem ou assanham o nosso descontentamento geral e cada vez mais dividem o país? Não existem hábitos de tolerância e de compromisso, não há instituições que inspirem o respeito da maioria da população, não há uma classe dirigente respeitável e respeitada. Nem sequer há uma razão maior para um patriotismo indiscutível e partilhado. Sem nenhum fundamento sólido, Portugal anda de facto à mercê das circunstâncias.

Pior: os motivos para o caos, que são simultaneamente aos motivos para a tirania, não param de aumentar. A corrupção cresce e a justiça persiste na sua incompetência e lentidão. O Estado passa por couto privado do privilégio e dos “negócios”. Os políticos ganharam uma fama (com frequência, merecida) de carreirismo e desonestidade. A autoridade da “inteligência” desapareceu. E a própria Igreja desistiu ruidosamente do século. Isto é um convite a um aventureiro ou bando de aventureiros para se apoderarem e se entrincheirarem no poder. Por enquanto, essa catástrofe ainda anda longe. Mas, com a rapidez da mudança num mundo fluido e imprevisível, não admira que amanhã bata às portas da cidade. O dr. Cavaco e o dr. Passos Coelho deviam pensar duas vezes no que fazem.

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