A exemplar história de um homem que pela primeira vez decidiu não ir votar

Aos 60 anos, a morar há quatro no Reino Unido, está como o país, envelhecido, endividado, à procura de saída lá fora.

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“O gerente do banco a telefonar para casa e eu já sem saber o que dizer.” Ele conhecia as respostas: “Não estou a trabalhar”, “Não recebi”, “Não tenho dinheiro” Nelson Garrido
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Nelson Garrido

Não vai votar. Desta vez, não quer, não está para aí virado. Desde o 25 de Abril de 1974, Aníbal Reis só não votou nas presidenciais de 27 de Junho de 1976, ganhas pelo general Ramalho Eanes. Estava internado num hospital a roer-se por dentro por não poder participar naquela histórica decisão.

Teve uma infância difícil. Começou a trabalhar aos 11 anos numa pensão. Só tornou à escola por lá no Bairro, na freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, Ourém, terem criado turmas de 5º e 6º. Estava no 9º quando foi à inspecção. Já não teve de andar no mato de G3 ao ombro. Naquele ano Portugal libertou-se da ditadura e da guerra colonial e anos depois virou-se para a Europa. Aníbal quis ter casa, fazer férias no Sul, dar curso superior à filha. E durante anos tudo isso pareceu possível. De súbito, tudo se desmoronou.

Passa horas ao balcão, em Salford, nos arredores de Manchester, Noroeste de Inglaterra, de calça e colete. Trabalha no restaurante “Taste of Portugal”, traduzível por “Sabor de Portugal”. É como se o seu rosto fosse o rosto de uma nação envelhecida, endividada, calma mas diligente, à procura de saída lá fora. Não pensou que um dia teria de emigrar, como o pai. Durante 14 anos, trabalhou numa loja de produtos agrícolas e viu o negócio prosperar ao sabor da modernização de uma agricultura arcaica – Bruxelas impulsionou o investimento em máquinas, estábulos, novas plantações, sistemas de drenagem.

O país viveu um boom de construção. Aproveitando uma oportunidade para ganhar mais, Aníbal mudou-se para uma fábrica de tintas. “Tinha um gozo especial em abrir clientes”, diz. Ao fim de nove anos, foi aliciado pela concorrência. Volvidos dois anos, saiu do ramo. Já se sentia a retracção do investimento nas obras públicas, da recessão no mercado do imobiliário, depois de anos de desvario. O novo emprego, numa fábrica de máquinas de rótulos, durou menos de seis meses. “Havia ali algo de estranho. A empresa acabou por fechar.” Que fazer quando se fica desempregado, aos 52 anos, num país que amiúde recusa contratar trabalhadores mais velhos e não se coíbe de usar o critério etário na hora de despedir?

Decorria o Verão de 2008. Ainda nem caíra o Lehman Brothers, pedra de toque da crise, que começou no mercado de crédito imobiliário de alto risco dos EUA e se propagou à Europa, em particular ao Sul. Iam no adro as notícias sobre despedimentos, suspensões de contratos de trabalho, reduções de horário.

Em 2008, a taxa de desemprego foi de 7,6%. Subiu para 12,7% em 2011, ano em que a troika desembarcou em Portugal. Subiu para 15,5% em 2012 e para 16,2% em 2013. E desceu para 13,9% em 2014 e para 12,4% em 2015, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Muito por efeito de gente que deixou de contar, como Aníbal.

Quando cá estava, fez “tudo o que apareceu”. Vendeu cartões de crédito numa grande superfície comercial. Trabalhou no recenseamento agrícola, no recenseamento da população, no recenseamento da habitação. Vestiu a pele de cliente mistério em lojas de telecomunicações e companhia de seguros. Comoveu-se ao entrevistar vítimas de esclerose múltipla. Foi administrativo numa junta de freguesia. Só trabalhos pontuais, mal pagos, muitas vezes tarde. E contas, contas, contas…

Nos anos 90, quando era permitido sonhar tudo, tudo, Aníbal pegara nos 60 mil euros que tinha poupado e construíra uma casa espaçosa. “Tinha o terreno e pensei: até ao telhado fica feito; o resto, hei-de conseguir.” Para a tornar habitável pedira outros 52,5 mil, com juros de 9%. Nunca chegou aos últimos acabamentos. Se se põe a pensar nisso, até pela conversa que por aí vai, é capaz de dizer que se deixou levar pelas facilidades do crédito. Se pensa mais ainda conclui que nunca lhe passou pela cabeça que um dia não conseguiria pagar comida, água, luz, medicamentos e 393 euros de prestação ao banco. Sempre acreditou que haveria dois salários a entrar até ele e a mulher chegarem à idade da reforma.

As depressões da mulher alongaram-se. Ela deixou de conseguir trabalhar. Enquanto ele teve salário, foram aguentado. Depois… “O gerente do banco a telefonar para casa e eu já sem saber o que dizer.” Ele conhecia as respostas: “Não estou a trabalhar”; “Não recebi”, “Não tenho dinheiro”. Quantas pessoas fingiriam não ouvir o telefone ou atenderiam e engoliriam em seco, como ele? Repetiam-se as notícias sobre famílias forçadas a entregar a casa ao banco. E sobre insolvências – já não relacionadas com o sector têxtil, como acontecera no início do século, quando a União Europeia abriu as portas à China, mas na construção, nos serviços, até nas famílias.
 
Partiram pessoas de todas as idades
Foram várias as gerações que saíram às ruas a 12 de Março de 2011. A família de Aníbal espelhava o porquê. Nunca se tornou jornalista a filha, que se licenciou em Comunicação e passou por vários estágios e trabalhos precários antes de se tornar administrativa num hospital privado. "Os pais quiseram o melhor para os filhos, investiram muito na educação deles, depois a situação do país alterou-se... De um momento para o outro, ficaram pais e filhos à rasca. "Não podia afundar-se, como o país. “Tive de dar uma volta à vida. Tive de renegociar o empréstimo – o meu pai tinha algum dinheiro e ajudou-me.” E teve de partir. 

Portugal esvaziava-se. O número de imigrantes não parava de descer – 443 mil em 2010, 434 mil em 2011, 414 mil em 2012, segundo o Serviço de Estrangeiros de Fronteiras. E o número de emigrantes não parava de subir – 70 mil em 2010, 80 mil em 2011, 95 mil em 2011, pelos cálculos do Observatório da Emigração, que tem por base os registos de entrada dos portugueses nos países de destino. Não partiam apenas jovens, solteiros ou recém-casados, como nas décadas de 60 e 70. Partiam pessoas de todas as idades. 

Durante décadas, o fluxo para o Reino Unido fora discreto. Com o fim da exigência da autorização de trabalho, houvera um estouro. Pouco a pouco, tornou-se o principal destino dos que deixavam Portugal. Apesar do alarido em torno dos qualificados, a maior parte tem formação baixa ou média, como Aníbal. Responde a sectores da economia impossíveis de deslocalizar, como o comércio, as limpezas, a segurança, a construção, a agricultura ou a indústria agro-alimentar.

Aníbal experimentou antes de se atirar de cabeça. Em 2008, 2009, 2010, 2011 cumpriu contratos de sete a oito semanas numa fábrica de embalamento de perus, no condado de Norfolk, Leste de Inglaterra. A empresa de Lisboa, que já antes o recrutara, procurava quem quisesse trabalhar seis meses na apanha de morangos, numa produção agrícola, no condado de West Midlands, Oeste de Inglaterra. "Pagámos 300 euros cada um”, recorda. A 5 de Maio de 2012, foram 14 portugueses para Evechan, a uns 40 quilómetros de Birmingham.

“Tínhamos visto um vídeo muito bonito em Lisboa. As instalações eram em caravanas, mas ok. Quando lá chegámos, já quase à noite, o que fomos encontrar? Uma coisa velha. Só ervas em volta. Não havia gás. Não havia condições mínimas. Não passei tão mal essa noite, como outros, porque trazia uma mantinha. E não havia trabalho.” Revoltados, telefonaram à empresa de recrutamento. “Então mandam para aqui o pessoal e não há trabalho?”

Resolveram o problema do alojamento. Passaram a dormir em quartos duplos, num pavilhão, com acesso a cozinha industrial e balneários – pagavam 3 libras por dia pelo alojamento e iam às compras para cozinhar. Mas esperaram três semanas que os morangos ficassem no ponto.

Não estava “descalço”. Levara 220 libras. Havia quem tivesse levado bem menos e ao fim de quinze dias já chorasse. Alegraram-se quando, por fim, viram os seus nomes no placard de trabalhadores requisitados. “Tínhamos de estar prontos às três e tal da manhã para ir trabalhar. Às quatro já se começa a ver sol. Quando chegámos ao campo, umas 70 a 80 pessoas, chamaram um a um. Eu não percebia grande inglês, mas fiquei com a sensação que íamos apanhar tabuleiros com dez cuvetes de morangos e que por cada tabuleiro iam pagar uma libra e vinte. No nosso grupo havia um rapaz que falava bem inglês. ‘Ó Pedro, é assim?’ ‘Também estou a perceber isso’.”

Protestaram em vão. “O indivíduo que lá estava disse: ‘Não quero saber!" Puseram-se em linha. As estufas teriam à volta de 800 metros cada. Decorridos uns minutos, ordem para parar. “As ervas daninhas e os morangos podres tinham de ir para o rego. Mais trabalho dava! Como íamos ganhar o dia? No primeiro dia, o que apanhou mais fez nove tabuleiros. Eu fiz seis!” Não foi trabalhar no segundo dia. Fingiu doença.

No terceiro, todos os portugueses e todos os húngaros fizeram o mesmo. Protestaram em coro. Os romenos seguiram para as estufas. “Tivemos ali momentos terríveis… Não tínhamos com quem falar. Que fazer? Como sair dali? Para onde?” Apareceu a polícia. Atrás dela, uma equipa de um jornal nacional. Era só mais um caso de trabalhadores comunitários explorados no Reino Unido. O problema, como já tantas vezes explicou o geógrafo Jorge Malheiros, é que a circulação de trabalhadores na União não se faz entre iguais.

Nova mudança de vida
Na carteira, Aníbal tinha um cartão de uma amiga dos seus tempos de juventude. “Telefonei-lhe. Disse ela: ‘Eu estou é no País de Gales.’ Relatei-lhe a situação. ‘Vou aí buscar-te.’ Eu disse: ‘Não, eu tenho dinheiro para apanhar um autocarro e ir ter contigo. Preciso é de algum apoio.’ E ela disse: ‘Isto é uma cidadezinha, mas tem alguma indústria, há um cafezinho português. Vem cá ter.’” Apanhou uma camioneta para Birmingham e de lá seguiu para Gales.

Como prometido, a amiga levou-o ao café. A dona do café teve com ele uma longa conversa. Tão longa que Aníbal até estranhou. Naquele mesmo dia, à noite, telefonou-lhe a dizer que talvez o marido lhe desse trabalho. Ouviu a proposta de manhã. Iriam abrir um restaurante/mercearia na Área Metropolitana de Manchester. O salário base seria baixo, mas teria alojamento e alimentação. “Estavam a iniciar o negócio, não sabiam se ia dar ou não.” 

Instalou-se em Salford. Partilhava casa com o cozinheiro e um dos sócios do restaurante/mercearia. Pagava contas em Portugal. Parecia estar tudo a encaminhar-se na sua vida. Todos os dias, telefonava à mulher. Muitas vezes, tarde, já às 23h ou às 24h, depois de terminar o serviço. Uma noite, ela não atendeu. “Adormeceu”, pensou ele. No dia seguinte, telefonaram-lhe. Fora encontrada morta à saída de casa. Era bipolar.

Apesar do apoio familiar, psicológico, psiquiátrico, fora aumentando a dose de comprimidos. “Tomou-os em excesso e quando acordou – aquilo não é acordar, é estar zonza – saiu. Pelo relatório da autópsia, deve ter tido um choque térmico associado ao consumo de medicamentos.”

“Eu, sozinho não me sinto”, assegura. “Procuro não estar sozinho. Não paro. Também não me ponho a pensar: ‘Ai, o que vou fazer à minha vida?’ É um dia de cada vez. Hoje, é um e amanhã há-de ser outro. Não vale a pena fazer grandes planos. As voltas que a minha vida já deu! Eu ganhei muito dinheiro como vendedor em Portugal. Nos anos bons da construção, tive meses a ganhar 500 contos!”

Há-de ficar por ali pelo menos até ter tudo pago. “Tenho saudades de pessoas, mas isso aguenta-se”, sorri. “Sinto uma grande desilusão com Portugal. A nível de governos, então! Mesmo aqui, a forma como tratam as pessoas no consulado é erradíssima. Aumentou a emigração, mas diminuíram o pessoal. Se preciso de qualquer coisa, tenho de marcar e três meses depois é que sou atendido.”

Não foi ao consulado de Manchester recensear-se, nem apanhará um avião para vir votar. Uma vez mais, reflecte uma tendência: no círculo europeu, o número de recenseados passou de 75 053 em 2011 para 78 253 em 2015; no do resto do mundo, de 120 056 para 164 273.  Pela primeira vez na vida, Aníbal não quer votar, não está para aí virado. Irrita-o a espécie de bipartidarismo em que o país caiu. Acha que a democracia não se cumpriu e está farto de fazer de conta. 

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