A Europa a partir de Cabo Verde

Na semana passada desloquei-me a Cabo Verde a fim de participar em dois debates promovidos pela Presidência da República daquele país, os quais versaram o tema do impacto das migrações nas relações euro-africanas. Tive a oportunidade e a honra de debater com duas personalidades de especial relevo na vida intelectual e política cabo-verdiana: Corsino Tolentino e Onésimo da Silveira. Impressionou-me uma vez mais a vitalidade democrática do país, traduzida numa ampla vontade de participação cívica e numa elevadíssima qualidade de discussão política. Contudo, o que mais me interessou reter destes dois debates foi a visão projectada por duas figuras cimeiras da sociedade cabo-verdiana sobre o complexo fenómeno migratório que, com origem em África, tem como destino o continente europeu, e, a partir daí, sobre a questão mais geral do relacionamento entre os dois continentes.

 Apesar da diversidade dos seus percursos e do seu posicionamento doutrinário e político, ambos coincidiram numa valorização das referências culturais humanistas que a Europa abundantemente proclama e numa problematização séria da presente realidade africana. As duas coisas dão que pensar.

Superada a fase colonial, de uma violência real e simbólica que não pode ser subvalorizada, as grandes figuras do pensamento e da cultura africanas conseguem estabelecer uma relação não traumática com o património mais luminoso do espaço ocidental.  Só isso já constitui um feito notável se recordarmos que a invocação de uma suposta superioridade civilizacional constituiu o fundamento último da prepotência colonial. Na sua forma mais elaborada e por isso mesmo mais cínica o Ocidente usou a sua própria herança iluminista para justificar a subjugação e a anulação dos povos africanos. Nisso consistia a célebre ideia do "fardo do homem branco". O risco de alienação radical dos povos assim submetidos era imenso, dada a extraordinária carga de violência a que as suas estruturas psíquicas colectivas e individuais foram sujeitas. No entanto, escassas dezenas de anos decorridos após a independência desses países, parecem suturadas as principais feridas e restabelecida a capacidade de um diálogo lúcido e verdadeiramente útil.

Na sociedade democrática cabo-verdiana é possível problematizar sem condescendência a presente situação histórica do continente buscando alternativas a modelos de organização política e económica manifestamente esgotados. A crítica às oligarquias, que a generalidade dos países ocidentais trata com desvelo, é ali feita sem qualquer tipo de contemplação. Os verdadeiros homens livres de África não ignoram a tragédia que tais situações constituem. A má distribuição da riqueza, a incorrecta integração económica nos circuitos da globalização e a depredação de múltiplos recursos naturais são o resultado de uma aliança entre a obsessiva ganância das oligarquias locais e os agentes de um neocolonialismo pouco disfarçado. Quando os africanos abandonam os seus lugares de origem fazem-no para fugir da miséria e da insegurança que este estado de coisas acaba por lhes impor.

Como já aludi acima, constitui motivo do maior interesse a forma como a Europa é presentemente percebida pela elite intelectual africana. Correndo embora o risco inerente a uma generalização feita a partir do caso específico de Cabo-Verde, ousarei afirmar que mesmo quando desilude a Europa subsiste como uma referência assaz recomendável. É aliás por isso mesmo que ela desilude: por não estar em muitas situações concretas à altura de valores, princípios e heranças que reclama e consegue projectar. Causaram-me especial impressão as considerações ouvidas a respeito do nosso país, de uma generosidade tal que despertaram em mim esse tão conhecido complexo de culpa que não se reduz, de resto, a um arrependimento pós-colonial. Vai mais longe do que isso, já que também radica na tomada de consciência da distância que separa a forma como somos olhados da nossa própria e tangível realidade quotidiana. É verdade que, como fiz questão de salientar nos debates em que participei, essa capacidade de avaliação crítica e de desconstrução de representações mitológicas constitui uma das mais singulares e extraordinárias características da cultura europeia. Foi também essa dimensão que concorreu decisivamente para a ultrapassagem desse grande desencontro histórico que o colonialismo constituiu e para a criação de condições propiciadoras de um diálogo capaz de integrar aquilo que, para além desse desencontro, configura uma herança comum. É claro que Cabo-Verde, pela sua condição histórica, geográfica e cultural representa um privilegiado ponto de encontro de múltiplas memórias dos dois continentes e de gestação de novas realidades humanas que acabaram por adquirir na orla americana a sua expressão mais exuberante. Impressionou-me ouvir Onésimo da Silveira referir o pensamento antropológico de Gilberto Freyre, autor da teoria luso-tropicalista de que o colonialismo se serviu despudoradamente, com a anuência, é certo, dessa figura da vida intelectual brasileira. Tal demonstra uma tão elevada ausência de complexos históricos que só pode ser entendida como resultado de uma generosa idealização do nosso próprio país. Tenhamos consciência do quanto isso aumenta as nossas responsabilidades.

À altura dessas responsabilidades estiveram, felizmente, os presidentes das Câmaras de Oliveira do Hospital e da Batalha ao declararem a disponibilidade dos respectivos municípios para o acolhimento de alguns dos refugiados que a Comissão Europeia propõe distribuir pelos diversos Estados-Membros. Contra a corrente de declarações mesquinhas proferidas por vários chefes de governo e ministros dos negócios estrangeiros por essa Europa fora, estes dois autarcas distinguiram-se pela forma como revelaram compreender os fundamentos do projecto político europeu. No caso de Oliveira do Hospital tal gesto suscitou de imediato uma pacóvia e repugnante reacção por parte da oposição local, a qual deu mostras de como a torpeza moral não perde ocasião de se manifestar num discurso populista abjecto. Infelizmente as hesitações e renitências de algumas das nossas elites políticas caucionam os desvarios dessas pobres mentes. Portugal poderia, aliás, destacar-se por uma acção diplomática menos condicionada por calculismos imediatistas e claramente empenhada na promoção dos direitos humanos. Julgo mesmo que é preciso repensar aspectos essenciais da nossa acção diplomática de modo a aumentar a sua eficácia enquanto instrumento de afirmação de um projecto nacional vocacionado para o aproveitamento do que de mais positivo contém a nossa imagem externa. Isso passará por um outro relacionamento com a nossa própria história e por uma outra capacidade de valorização da nossa dimensão de povo com uma vastíssima experiência internacional. Bom seria, por isso mesmo, se nos conseguíssemos destacar por uma abordagem diferente do tema dos refugiados e dos migrantes que nos próximos tempos vai dominar grande parte do debate político europeu.

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