O segundo fôlego de Passos

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Nuno Ferreira Santos

1. O primeiro-ministro ficou grisalho. Envelheceu. A figura de ar pueril que ganhou o PSD e venceu as legislativas de 2011 desvaneceu-se com o programa de ajustamento. Mas, por estes dias apareceu algo no ar que lhe parece ter insuflado um novo ânimo.

Os dados do Boletim de Inverno do Banco de Portugal, as estatísticas do emprego ou a estimativa da Unidade Técnica de Apoio Orçamental, que prevê um défice público melhor do que esperado, criaram-lhe um tempo novo. A médio prazo permanece o fantasma de mais austeridade e o pesadelo de uma dívida que toda a gente sabe que não se consegue pagar. Mas a curto prazo, o que mais conta na política, Passos já não duvida que a legislatura chegará ao fim. Já se arroga ao “privilégio” de contrariar o FMI. Já garante estar “em condições de dizer aos portugueses que ao longo dos dois últimos anos e meio conseguimos um resultado que dispensa um segundo programa” de ajustamento. Como raramente aconteceu nos últimos dois anos e meio, a conjuntura permite a Passos Coelho pairar sobre a devastação da crise. Por uma vez pôde abster-se das más notícias, pôde recusar a expiação de culpas ou o fatalismo da troika para nos dizer que, finalmente, se ainda não há luz ao fundo do túnel, há pelo menos um túnel.

Passos navega a onda e reclama créditos, lembrando as reformas do Governo tornaram a economia “mais aberta, exportadora e capaz de conquistar de mercado no exterior”. Não foram as reformas que, de súbito, fizeram os empresários aumentar as suas apostas na exportação: foi a brutalidade da crise e a necessidade. Mas isso pouco importa. Os dados estão à vista e impressionam. O choque tecnológico de Sócrates eclipsou-se nas estatísticas (a exportação de bens com elevada intensidade tecnológica caiu), mas a velha economia, dos produtores agrícolas ou dos empresários de Felgueiras que durante anos foram alvo da caricatura da subsidiodependência ou do novo-riquismo parolo estão a dar conta do recado. O país dos últimos 35 anos que hoje tanto se despreza evoluiu e é hoje capaz de competir sem ter de baixar salários. Já fez o ajustamento que mais interessa à sua sustentabilidade: vende mais ao estrangeiro do que tem de importar. “Portugal, enquanto Nação, não precisa de mais austeridade”, escreve Ricardo Arroja no Diário Económico – só o Estado “persiste em viver acima das suas possibilidades”. E em grande medida porque gasta mais em juros de uma dívida impagável do que com a educação.

Se as previsões do Banco de Portugal (e de quase todas as instituições financeiras nacionais e internacionais) se confirmarem, o cenário político para as legislativas de 2015 pode mudar radicalmente. O que esta semana Passos nos veio dizer é que está em construção uma nova narrativa que a curto prazo o pode afirmar como o homem providencial que deu sentido ao sofrimento da austeridade. O homem que “salvou” o país do precipício. Nas europeias saber-se-á se esta narrativa está a ser percebida ou se a memória dura de anos de desemprego, de infelicidade, da má governação, de utopias ideológicas e de empobrecimento falarão mais alto. Ainda assim, as notícias das últimas semanas não são boas para o PS nem para o Bloco – o PCP, na sua coerência e ligação ao mundo real é já um vencedor líquido da crise. Por umas semanas Passos pode acomodar a sua resiliência transmontana. As notícias sobre a sua morte política talvez tenham sido um pouco exageradas.

2. Não é apenas Seguro que tem o seu horizonte perturbado pela ténue recuperação: Rui Rio e a facção do PSD que o empurra também têm razões para estarem preocupados. Contrariando a sua proverbial propensão para o recato, Rio desmultiplicou-se em aparições públicas que levaram vários articulistas a relatarem a construção de um novo D. Sebastião que cavalgaria do Norte para salvar o país da horda de Passos e da troika. A imagem é poderosa, mas, como seria de esperar, as aparições do ex-presidente da Câmara do Porto não representam ainda um confronto em campo aberto pela liderança do PSD: são, antes de mais, uma forma de ocupar espaço e de evitar a afirmação de uma terceira via no partido. A política tem horror ao vazio e os políticos também.

Passos sabe que terá de enfrentar alguém no interior do partido antes de 2015 e tem-se esforçado por gerir essa inevitabilidade. Tratou de garantir que o mais brilhante cérebro do partido na actualidade, Paulo Rangel, ficasse pelo Parlamento Europeu; e obrigou Rio a vir a jogo oferecendo-lhe a presidência da Comissão Instaladora do banco de fomento. Rio recusou porque percebeu a armadilha. E continuou a sua missão. Pena é que o tenha feito com repetições de lugares-comuns e ideias feitas sobre a crise do regime. Com Passos forte ou sem Passos forte, a sua putativa corrida exige um fôlego que ainda não mostrou. Como escreveu Vasco Pulido Valente no PÚBLICO, “infelizmente, quando chega ao momento de oferecer soluções, ele, um político, não avança com mais do que ideias vagas, contraditórias (…) e, em geral, uma crítica fluída e obscura às desgraças por que passamos”.   

3. Chama-se Subir Lall e é o “técnico” que o FMI mandou para vigiar o cumprimento do Programa de Ajustamento. Uma missão tão decente como qualquer outra, pelo menos até ao momento em que Lall se decide dedicar às subtilezas da semântica. Esta semana mostrou-se espantado pelo facto de os jornais colocarem na agenda da troika o corte nos salários dos privados dizendo: “Não sei de onde é que a comunicação social tirou essa ideia”. O Jornal de Negócios logo desfez a dúvida com uma citação de Subir Lall de 13 de Novembro, na qual dizia: “Estamos a olhar com cuidado para ver o que podemos fazer em relação aos custos salariais. Estamos a trabalhar nisso e vamo-nos concentrar nisso na próxima avaliação”.  

A vocação de Lall para a interpretação textual não se ficou por aqui. Respondendo às críticas de Christine Lagarde, a chefe máxima do FMI, sobre os “erros” cometidos nos programas de ajustamento de Portugal ou da Grécia, Lall trataria de dizer que, bom, aquilo que Lagarde tinha dito não era bem aquilo que os jornais transcreveram, que houve uma descontextualização da mensagem. E mesmo que haja erros, o “técnico Lall” insistiu que o programa era para manter. Ponto. Um pouco mais de dignidade de Estado exigiria que Lall apresentasse uma declaração por escrito da sua chefe a assumir a estupidez própria de quem identifica erros e não os repara, como bem recomendou António Costa na Quadratura do Círculo. Um burocrata com poder para agir à revelia do pensamento dos seus chefes é um absurdo que, por uma questão de dignidade, qualquer Governo com espinha dorsal tinha o dever de combater. Pior do que ser o FMI a exercer o “protectorado” é serem os seus técnicos a fazê-lo.

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