O “fico” de Passos nem a ele lhe convém

1 - Com todo o risco de ser apontado com um dos jornalistas “patéticos” ou “preguiçosos” que ontem o primeiro-ministro vituperou, assino o óbvio: é muito melhor um governo com um programa suspeito do que um governo suspeito de não ter programa nenhum. Passos e os seus ministros passaram da primeira para a segunda condição no último ano, quando a troika partiu, o que torna difícil perceber por que razão insiste o primeiro-ministro em ocupar São Bento até ao fim do mandato com tão pouco para lá fazer.

O estado de dissolução a que chegou o seu Governo é irreparável – uma remodelação não passaria de um cuidado paliativo. Os erros políticos dos seus ministros sucedem-se a um ritmo vertiginoso. O desnorte em relação aos impostos que se pagam ou as deduções que se conseguem com o Orçamento do Estado de 2015 raiam o limiar da anedota. A coligação regressou às noites das facas longas, com braços-de-ferro, queixumes e fugas para imprensa. O que leva então Pedro Passos Coelho a carregar este cadáver moribundo por mais um ano?

Muitos dirão que a lei é a lei, e se a lei aponta a realização de eleições lá para Setembro/Outubro, é aí que os portugueses se devem pronunciar. Passos segue essa leitura, ao afirmar que “só pode haver eleições antecipadas se resultarem de uma crise política”. O calculismo e o escrúpulo legalista sugerem que a antecipação das eleições é uma agressão à normalidade democrática. Não é. Na Europa acontece regularmente. As razões que Ricardo Costa, na sua coluna no Expresso, indica para não se anteciparem as eleições (“interrompe um mandato legítimo, assenta num sentimento político não mensurável e favorece o principal partido que desafia quem está no poder”) baseiam-se na tese de que qualquer mudança de roteiro tinha de ser provocada por uma imposição mais ou menos golpista. Pode não ser assim. Há outra via para se lá chegar.

Ora os agentes únicos dessa via são Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. Sem o seu consentimento, a antecipação das eleições deixaria de ser um remédio e poderia dar lugar a uma doença. Como diz bem Fernando Madrinha, também no Expresso, “sem que caia por si, ou com o seu assentimento, já recusado mais de uma vez – ou ainda na hipótese de surgir fundado motivo constitucional para o Presidente o demitir –, a antecipação das eleições ao arrepio do que a lei estabelece seria um golpe nada honroso para quem o praticasse”. O Presidente da República sabe-o e António Costa também. Há quem, como Alberto Castro, defenda que o “interesse patriótico” é neste contexto tão crucial que António Costa deveria negociar com o Presidente uma antecipação. “Por mais institucionalista que este [Cavaco Silva] seja, é economista e político, não podendo ignorar o que entra pelos olhos dentro: havendo mudança de Governo, como tudo indica, a manutenção do calendário eleitoral colide com os prazos de elaboração do orçamento e compromete a eficácia política”, escreveu Alberto Castro na sua coluna do JN.

Sendo qualquer ingerência externa no mandato do Governo uma operação arriscada, resta Paulo Portas e Pedro Passos Coelho perceberem que há um tempo que morreu e que eles nada têm a ganhar com a prolongação do velório. A continuar assim, nota Fernando Sobral, no Económico, “António Costa não precisa de se mover. Basta-lhe que o Governo continue a desintegrar-se perante os olhos dos portugueses, como um produto biodegradável, que se vai decompondo até desaparecer por completo”.

Por todas as razões e mais algumas, não faz sentido Passos manter o statu quo. O país tem absoluta necessidade de olhar para a frente e de discutir um novo ciclo. O Governo tem-se mostrado incapaz de o encontrar. Tornou-se uma colecção de náufragos vergados pelo peso dos erros de governação e por este clima pútrido que, a cada dia que passa, faz da coligação um pântano de hipocrisia política, com Paulo Portas a defender a “estabilidade” como se não se soubesse que a relação entre PSD e CDS está longe de estar estável. Com as condições de que dispõe e com um pouco de sorte, o Governo conseguirá quando muito fazer gestão corrente. Já não tem nervo para reformar. A bem de Passos, de Portas, de António Costa e de toda a oposição, a bem do Presidente e, principalmente, a bem de todos nós, era bom que caísse o pano nesta peça que já se esgotou.  

2- José Manuel Durão Barroso saiu da Comissão Europeia. A era de conformismo, de renúncia a ideais, de subalternização perante os mais fortes e indiferença pelos mais fracos acabou, a bem da Europa e de todos os que (ainda) acreditam no seu projecto. Uma notícia boa. Não há, nem pode haver, lugar para a condescendência com esses dias. Se há algo capaz de explicar as poucas vénias que se lhe fizeram, não é o elogio da sua acção ou do seu programa, apenas algum cavalheirismo ou a simpatia pelos “nossos” (os portugueses). Porque, no resto, Durão Barroso é o fiel intérprete dessa horrível propensão nacional para a ronha, para navegar à bolina, para se colar ao ferro ou ao plástico e no final enrolar tudo num discurso asséptico com notas de ilusionismo. A arte de engonhar não se esconde por muito tempo. Ele foi um desastre como presidente da Comissão Europeia, ponto final.

Como sempre acontece quando nos vemos livres de indesejados, a margem para a complacência alarga-se, e é por isso que Francisco Assis considera que Durão “esteve bem em tempos dados a compromissos institucionais, esteve mal nos momentos em que se lhe exigia uma atitude mais visionária e corajosa”. O que são “compromissos institucionais”? São aqueles acordos nos quais o tacticismo e o equilibrismo político imperam e aí, sem dúvida, Durão prevaleceu como um competente mestre-de-cerimónias. O problema é que nestes tempos em que a União Europeia esteve perto do colapso, nestes anos em que assistimos à desagregação dos valores comunitários e à instituição de um directório liderado pela Alemanha, do que a Europa precisava era de “uma atitude mais visionária e corajosa”, não de um corta-fitas.

Como escreveu Bernardo Pires de Lima no DN, os tempos “não foram tempos fáceis, de facto, mas é normalmente nestes que os políticos acima da média sobressaem, lideram e não se remetem à gestão da ditadura do possível. Barroso, em retrospectiva, não foi um deles”. Pois não foi. “A Europa que ele entrega aos cidadãos europeus, dez anos depois, é uma caricatura do que já foi e um cemitério das esperanças que já tivemos todos”, nota por sua vez Miguel Sousa Tavares, no Expresso. Maneirinho como ele é, porém, ainda há-de conseguir um cargo internacional, uma sinecura num organismo público ou, quiçá, uma candidatura a um alto cargo político na pátria.

Há-de haver quem se esqueça que ele deixou o Governo de Portugal para se tornar um servidor das grandes potências na Europa. Os portugueses com memória e com coluna vertebral hão-de lembrar-se.

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