Empurrar com a barriga

Se quiser disputar eleições, Passos terá de dizer ao país, e de viva voz, aquilo que disse protegido pelas paredes do Palácio de Belém.

Por mais que o Governo assuma uma atitude pública de assobiar para o ar cada vez que é colocado perante a necessidade de o país debater a reestruturação da dívida, o que é facto é que o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, sabe que mais tarde ou mais cedo a dívida pública portuguesa vai ter de ser revista, negociada ou reestruturada, de acordo com o conceito que cada um preferir aplicar ao acto.

A certeza de que Passos sabe que a situação tal como está é inviável ficou comprovada no último Conselho de Estado, quando o próprio – antecipando-se à intervenção do secretário-geral do PS, António José Seguro, que anunciara levar o assunto àquela reunião – assumiu que sabia que tal acontecerá, mas que prefere esperar que sejam os credores a avançar com a ideia.

Passos Coelho é livre, como é evidente, de decidir e agir de acordo com as suas convicções. Mas a realidade é que, para que a governação do país possa avançar, há que definir critérios e acertar linhas de orientação para esta nova fase de relacionamento com a União Europeia e as instituições internacionais. E surge cada vez mais urgente o debate sobre o que fazer à dívida pública e ao tratado orçamental, o qual compromete Portugal com um cumprimento de 0,5% de défice ao ano, o qual está actualmente em 4,5%, bem como a redução acelerada da dívida pública a 60%, quando ela atinge actualmente os 130%.

A impossibilidade do cumprimento destes critérios sem destruir a economia nacional e fazendo-a regredir a patamares de há três décadas tem sido apontada. Esta semana foi reforçada por João Cravinho, que lançou o seu livro A Dívida Pública Portuguesa e que, em entrevista ao PÚBLICO, afirmou: “Simplesmente assim não podemos pagar. A menos que se entenda que é possível viver 20 anos na Europa – e ainda por cima para honrar a União Europeia – com tudo o que é contrário à essência do projecto europeu.” (PÚBLICO, 06/07/2014)

Falando abertamente sobre as condições actuais serem adversas à renegociação, Cravinho defendeu que "nunca há ambiente político para aceitar uma reestruturação quando não há ameaça suficiente em que cada um sinta que tem de fazer o impensável”. Ou seja, se não existir pressão portuguesa, o assunto não se resolve – aliás, como aconteceu na Grécia, cujos juros da dívida pública foram cortados na sequência da pressão do Governo grego alegando que não poderia pagar.

Mas também esta semana os economistas Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos apresentaram Um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa, que consiste numa “combinação de um adiamento da amortização da dívida com uma redução mais substancial dos juros”. (PÚBLICO, 08/07/2014). Mais um documento que procura contribuir para o debate que há a fazer, numa fase em que é essencial discutir os cenários futuros.

Assim, apesar de o primeiro-ministro usar uma táctica muito portuguesa de contornar e adiar problemas – conhecida como “empurrar com a barriga” – na expectativa de que a União Europeia assuma a incapacidade portuguesa de pagar o que deve e face à probabilidade de a dívida pública continuar a crescer –, começam a surgir dados, estimativas e ideias para um debate que tem sido adiado. Aliás, o turning point em termos nacionais em relação ao aumento de visibilidade deste assunto surgiu com a divulgação do “Manifesto dos 74”, no início de Março, momento em que entrou no mainstream político e económico, depois de a reestruturação ou a mutualização da dívida durante anos terem sido defendidas pela esquerda (PS, PCP e BE).

E torna-se cristalino que o tema da reestruturação da dívida associada ao da necessidade de corrigir o tratado orçamental será uma linha divisória central no debate eleitoral das próximas legislativas. Isto, porque toda a definição do que será a governação de Portugal nesta fase, que se segue à intervenção tutelar da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), depende dessa clarificação política, para que possa ser delineada uma estratégia orçamental e económica.

Passos pode fugir a este debate agora e ir “empurrando com a barriga”, dizendo publicamente que não pensa em renegociar e que a dívida pública é para pagar, quando no seu íntimo sabe que o que diz é impossível de fazer. Passos pode ir evitando ter uma atitude afirmativa e de pressão dos países dominantes na União Europeia, em particular a Alemanha, fugindo também a aliar-se aos países periféricos do euro, nos esforços para a defesa dos interesses dos países devedores. Mas, se quiser disputar eleições, terá de dizer ao país, e de viva voz, aquilo que disse protegido pelas paredes do Palácio de Belém.

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