25 de Abril outra vez

Todos os grandes momentos da história são momentos de possibilidade, de esperança, onde a justiça e a felicidade podem acontecer.

Sem ter alguma vez imaginado dedicar-me à política e reconhecendo nela a exuberância dos pecados mais sórdidos que existem na humanidade (como a recente votação do impeachment de Dilma Rousseff no Parlamento brasileiro mostrou a cores e em directo), não percebo como se pode estar tão distante dela e tão indiferente perante ela como está a maioria da população portuguesa.

Posso desfiar uma lista de razões possíveis para essa desvinculação (o descrédito dos políticos, o caciquismo dos partidos, o funcionamento opaco das instituições, as promessas traídas, a corrupção, a propaganda do “não há alternativa”, etc.), mas é só uma lista. Do outro lado, também há uma lista de tarefas exaltantes que estão ali, à nossa espera, à espera da nossa participação, da nossa palavra, da nossa acção, e para as quais a política parece ser, se não a única, pelo menos uma das soluções possíveis e uma das acções necessárias.

Vem isto a propósito do 42.º aniversário do 25 de Abril que celebrámos ontem e que, para muitos milhares de portugueses, talvez milhões, ainda está longe de ser apenas uma data histórica e ainda rima com esperança, com liberdade, com justiça e com o sonho de um mundo melhor. É isso que vemos nos olhos brilhantes uns dos outros quando cantamos a Grândola.

George Steiner, citando o mesmo discurso de Saint-Just onde este diz que “a felicidade é uma ideia nova na Europa”, dizia que, durante a Revolução Francesa, os cidadãos sentiam não só que o futuro lhes pertencia, mas que o reino da justiça estava ali, à sua frente. Não era algo longínquo e inatingível, mas uma coisa que ia acontecer já, ao virar da esquina, “segunda-feira de manhã”. Todos os grandes momentos da história da humanidade são assim, momentos de possibilidade, de esperança, onde a justiça e a felicidade podem acontecer, não apenas para os nossos filhos, para quem sempre os sonhámos, mas até para nós, segunda-feira de manhã.

Durante os últimos anos, anos de chumbo, anos de "there is no alternative", onde nos venderam como objectivo nacional o empobrecimento material e como virtude o empobrecimento moral da subserviência, houve alturas em que a política pareceu, mais do que um beco sem saída, um sítio mal frequentado por excelência e a governação uma mera capa de escroques e bajuladores, sedentos de gorjetas e prebendas.

Felizmente, o ar clareou e hoje podemos festejar um regresso à política. Não a política do servilismo, que consiste em obedecer, dobrar a espinha aos mais fortes e recolher as migalhas que caem da mesa, mas a política dos cidadãos, que consiste em tentar construir um futuro melhor.

Não penso de todo que o afastamento da política por parte dos cidadãos venha da dificuldade do empreendimento. Pelo contrário. O afastamento vem do sentimento de que o jogo está viciado e que a batota se instalou, não dos obstáculos que nos surgem à frente. Afastados os batoteiros e limpa a mesa, os obstáculos são bem-vindos. E há muitas conquistas que merecem o nosso esforço. Aqueles mesmos objectivos que os de antes nos diziam que eram impossíveis ou mesmo perniciosos: pleno emprego, fim da pobreza, combate às desigualdades, bem-estar para todos, combate à corrupção, protecção do ambiente, empresas sustentáveis, dignidade no trabalho, acesso universal à educação e à cultura, permitir que qualquer criança seja tudo o que pode ser independentemente da família e do bairro onde nasceu, tornar a administração mais eficiente, promover os direitos humanos e a paz. A lista é infindável, até porque não se esgota nas nossas fronteiras, e é a melhor lista de tarefas que existe no mundo.

A seguir ao 25 de Abril a felicidade era uma ideia nova em Portugal. E, por essa razão, porque sabíamos o que queríamos e o que era possível, porque tínhamos vislumbrado a felicidade e a justiça, conseguimos imensas vitórias, pelas quais devemos congratular-nos e agradecer aos muitos cidadãos e aos muitos políticos que lutaram por elas. Mas houve um momento onde nos esquecemos dessa política nobre, e deixámo-nos deslizar para uma política que foi apenas negócio e burocracia, desencanto e desistência.

Neste aniversário do 25 de Abril, pela primeira vez em muitos aniversários, sentimos que podemos fazer mais, que a política tem muitos desafios difíceis para nos colocar. E não há nada mais mobilizador do que um desafio.

Hoje vemos na Europa milhares de jovens que aderem a movimentos terroristas milenaristas, que oferecem sofrimento e morte sem fim. Fazem-no porque aí encontram uma identidade, a pertença a um grupo, uma fé, um projecto que os transcende e ao qual podem sacrificar a vida. Estes jovens não encontram nas suas vidas e nos seus bairros nada de mais exaltante que os motive. Mas existem mil desafios à nossa frente para os quais a política tem de conseguir mobilizar os cidadãos em geral e os jovens em particular. Hoje, podemos pensar que esse sonho está outra vez ao nosso alcance. Não o desperdicemos.

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