Adoção: reflexões sobre consentimento prévio, segredo de identidade e adoção aberta

Continuo a lamentar que a cultura maioritária vigente sobre adoção seja ainda a de desconfiança sobre a adoção aberta.

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O consentimento prévio para a adoção pode ser prestado em qualquer momento antes da maioridade da criança Dominika Roseclay/pexels

A nossa lei prevê no artigo 1982.º do Código Civil e no artigo 35.º do Regime Jurídico do Processo de Adoção (RJPA), aprovado pela Lei n.º 143/2015 de 8 de setembro, a possibilidade de os pais darem o consentimento para a adoção, independentemente da existência de um processo de adoção já em curso. É o que se designa por consentimento prévio para a adoção e tem o seu maior campo de atuação em situação de gravidezes não desejadas ou planeadas e em que as progenitoras informam, em momento antes do parto no estabelecimento hospitalar, que têm a intenção de “dar o deu filho para a adoção”.

Esta informação é registada pelo serviço social do estabelecimento hospitalar que, na sequência da confirmação de tal intenção após o parto, providencia pela proteção da criança, nomeadamente, acionando a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens para prover ao acolhimento do recém-nascido. Na situação de recém-nascidos, o consentimento só se torna válido se, seis semanas após o parto, for prestado no tribunal, perante um juiz, que deve esclarecer sobre as suas consequências bem como apreciar a sua validade, no que respeita à existência de uma vontade livre esclarecida.

Porém, o consentimento prévio para a adoção pode ser prestado em qualquer momento antes da maioridade da criança, obedecendo aos mesmos formalismos e requisitos de validade.

No momento do consentimento, podem os pais requerer que a sua identidade não seja revelada aos futuros adotantes, caso em que ocorre o segredo de identidade dos pais biológicos relativamente aos pais adotivos. Este segredo de identidade é excecional, já que ao contrário do que acontece com a identidade dos pais adotivos que, em regra, é secreta relativamente aos pais biológicos, é necessária a menção expressa da preservação da sua identidade por parte dos pais biológicos no momento da prestação do consentimento.

Na sequência da publicação do pacote legislativo de 2015, em matéria de proteção da infância e adoção, foi introduzida (no artigo 1986.º n.º 3 do Código Civil) e no RJPA (artigo 56.º n.º 5) a possibilidade de, na sequência da aplicação de uma medida de confiança com vista a futura adoção (na modalidade de confiança administrativa na sequência da prestação de um consentimento prévio para a adoção ou na modalidade da medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) não cessarem obrigatoriamente os contactos entre o adotando e alguns elementos da sua família biológica e tais contactos poderem persistir, sob qualquer forma (presenciais, telefónicos, informações, envio de fotografias ou cartas) entre o adotado e algum ou alguns elementos da família biológica ou mesmo entre os pais por adoção e qualquer elemento da família biológica ou qualquer outra figura que tenha tido um papel ou referenciação afetiva para a criança adotada. Esta possibilidade resulta de uma avaliação preliminar que contemple a ponderação dos seguintes aspetos: a idade do adotado, a sua prévia situação familiar, a abertura e consentimento dos adotantes e como é evidente, tudo analisado com a lente do superior interesse da criança.

Chegados a este ponto, poderá questionar-se qual a ligação entre estes três aspetos: consentimento prévio, segredo de identidade e adoção aberta?

Em resposta, recordo uma pedido de informações que me chegou pelo telefone, na primeira década deste século XXI, em que um pai me questionou sobre a melhor forma de concretizar uma resolução, tomada após reflexão aturada e na sequência da análise da situação de grande fragilidade em que se encontrava. Este pai considerava não poder assegurar de forma adequada os cuidados aos seus filhos, pelo que a decisão que se impunha, em seu entender, era promover a sua adoção por uma família que tivesse essas condições e a vontade para tal, proporcionando-lhes, para além desses cuidados ao longo do seu crescimento, um ambiente afetivo e familiar para o seu equilibrado desenvolvimento. Assim, estaria disposto a prestar o consentimento para a sua adoção.

Todavia, não queria que os seus filhos passassem por um acolhimento, considerando-se capaz de assegurar o seu cuidado até ao momento em fosse identificada uma família adotante e se consumasse a transição. Por outro lado, estando perfeitamente ciente de que o laço jurídico da paternidade seria quebrado, definitivamente, no momento em que a sentença de adoção fosse decretada, gostaria de tempos a tempos de receber alguma informação sobre os seus filhos, respeitando a forma como os seus novos e futuros pais entendessem adequado e possível fazê-lo.

Na ausência de tal possibilidade prevista na lei então vigente, na inexistência de outra solução de cariz familiar que não acarretasse a extinção do vínculo parental, como viria a ser o caso da legislação que aprovou o regime do apadrinhamento civil (que só entrou em vigor em dezembro de 2010) fiquei paralisada quanto à resposta e ao esclarecimento a dar àquela pessoa, que dava provas de uma grande generosidade, de um elevado sentido de responsividade parental e em que ainda hoje penso com particular admiração.

Não sei o final desta história de amor e sofrimento, e angustia-me que estas crianças tenham sido sujeitas a um acolhimento desnecessário por nunca terem estado em perigo e que não lhes possa ter sido proporcionada uma transição tranquila, desejada pelo pai, no respeito das suas referenciações afetivas e estruturantes e que, pelo contrário, tenham suportado uma descontinuidade imposta por procedimentos cegos e justificado pela ficção de que uma criança, relativamente à qual foi prestado um consentimento prévio para a sua adoção, se encontra em situação de perigo geradora de uma imediata intervenção do sistema de proteção.

E, se hoje dispomos dos instrumentos jurídicos que nos permitiriam cuidar desta situação com outra sensibilidade, continuo a lamentar que a cultura maioritária vigente sobre adoção seja ainda a de desconfiança sobre a adoção aberta, da conceção da parentalidade como exclusiva e a da imposição de ruturas como requisito para uma nova vinculação, não obstante a introdução na LPCJP e no RJPA do princípio do primado da continuidade das relações psicológicas profundas, que impõe, aos intervenientes e decisores, o respeito pelo “direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande dignificado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.”( alínea f) do artigo 3.º do RJPA e alínea g) do artigo 4.º da LPCJP).

Por outro lado, esta situação conduz-nos a uma reflexão sobre a verdadeira natureza destes consentimentos prévios para a adoção: Serão apenas consentimentos, indispensáveis para a validade da constituição de um vínculo adotivo? Ou, se por antecederem a existência de um processo de adoção, não representarão antes a definição de um projeto de vida querido para os seus próprios filhos, futuro que é desejado e não apenas autorizado? Nesta última perspetiva, correspondendo a uma vontade refletida e amadurecida, tudo deve ser feito para lhe dar concretização.

Se é certo que a adoção aberta não é solução universal, que o seu campo de aplicação é restrito e depende de uma correta avaliação da existência de condições específicas, não pode deixar de ser encarada e incumbe aos decisores aplicar as exceções hoje previstas na lei sempre que tal se justifique.

A finalizar deve ainda sinalizar-se a necessidade de corrigir a incongruência entre a LPCJP e o RJPA na medida em que para poder funcionar a exceção prevista no RJPA é necessário que a cessação de visitas e contactos entre a criança e a família biológica não seja efeito automático da sentença que decreta a medida de adotabilidade, como atualmente parece resultar do artigo 62.º - A n.º 6 que limita a possibilidade de manutenção de tais contactos apenas entre irmãos.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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