Como é ser jovem em 2021? Melhor do que há dez anos, mas continuamos todos “a tentar viver”
Já não há troika nem cortes salariais e a geração “à rasca” foi arranjando forma de se virar. Mas, dez anos depois, o emprego, as oportunidades e, sobretudo, a habitação continuam a ser um fantasma na vida de quem é jovem. “Andamos todos a tentar viver”, suspiram. No dia do 10.º aniversário do P3, quisemos saber como é ser jovem em 2021. Spoiler alert: continua a ser crítico. E “entusiasmante”, vá.
Há dez anos, uma geração baptizada com o nome de “enrascada” fazia o que podia para se desenrascar. Era ano de troika, de cortes salariais, de precariedade, de carreiras estancadas, e mais inevitável do que a austeridade era a urgência de sair à rua e reclamar uma vida. Digna.
Assim fizeram centenas de milhares quando, a 12 de Março de 2011, se manifestaram e apelaram à participação dos “desempregados, ‘quinhentos-euristas’ e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermináveis, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal”. Uma lista interminável com diferentes formas de dizer precariedade.
Já outros faziam — ou se preparavam para fazer — a sua própria luta. Individual, solitária, fora do país, à procura de outro que lhes reconhecesse competências e pagasse por elas. Acediam (que alternativa tinham?) ao que Pedro Passos Coelho, que tomou posse como primeiro-ministro poucos meses após a manifestação, aconselhava: “Mais exigência, menos pieguice, procurem emprego noutro sítio.”
Foi neste caldo de instabilidade que nasceu o P3. Dez anos volvidos, já não há troika, a “Geração à Rasca” desenrascou-se como pôde, a taxa de desemprego baixou, os salários cortados à função pública foram repostos, aconteceu uma pandemia, a “Geração à Rasca” sofreu outro tombo, a que se lhe segue não sabe o que vai fazer à vida. E como se não bastassem todas as dificuldades associadas à juventude, ser jovem no último ano e meio de pandemia e confinamentos foi, no mínimo, “estranho”.
Quem o diz é Gil Ubaldo, depois de despejar em avalanche o que o preocupa. Fala do “estado da cultura”, da “falta de oportunidades dos artistas que não podem ter uma carreira e vivem a recibos verdes”, do “desinvestimento no SNS e no ensino”, da “especulação imobiliária” e da “falta de residências estudantis”. Aos 21 anos e acabado de dar início ao mestrado em Filosofia Política, quais as perspectivas de vida? “Não tenho”, atira. “Uma ideia que costuma circular entre pessoas da minha idade é: ‘Já sei que vou ser precário, portanto mais vale estudar o que gosto.’”
Em vésperas de aniversário, o P3 quis saber como é ser jovem em 2021. Fez um apelo, procurou caras e testemunhos que dessem resposta à questão lançada. A precariedade e a falta de oportunidades são temas recorrentes. “Custa-me ver gerações inteiras de jovens portugueses que, pela precariedade/falta de oportunidades reais num país com políticas obsoletas e pouco atractivas, vêem, no estrangeiro, o veículo para a construção do que um dia poderá ser uma vida mais confortável e com um futuro promissor pela frente”, escreve Gonçalo Nobre Higino, de 30 anos, gestor de contratos a viver na Haia, nos Países Baixos.
Em 2019, a taxa de desemprego jovem recuou para os 17,6%, o valor mais baixo desde 2008. Mas a pandemia alterou a tendência: os jovens, precários e menos qualificados, foram os que mais sofreram. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, nos segmentos entre os 16 e os 44 anos, o nível de emprego é inferior ao período pré-crise, ao contrário do que aconteceu no segmento dos 45 aos 89 anos. No segundo trimestre de 2019 havia em Portugal 191 mil jovens que não estavam nem empregados nem a estudar. No segundo trimestre de 2021, o número fixava-se nos 210 mil.
São os grandes prejudicados quando as crises apertam. Por isso, Gil tenta acostumar-se à ideia de “arranjar um trabalho qualquer” que lhe permita “viver” até encontrar algo na área, que realmente queira fazer. “E, até lá, pagar as rendas altas”, esse monstro que impede, ou pelo menos atrasa, “o início de uma vida independente” — que Catarina Oliveira já teve e quer recuperar num futuro próximo.
“No espectro de dez anos, durante cinco fui uma pessoa sem deficiência e agora sou uma pessoa com deficiência”, começa por referir a nutricionista estagiária de 32 anos. Depois de uma inflamação na medula, voltou para casa dos pais e as “rendas estupidamente caras por casas completamente precárias” têm-na mantido por lá, apesar da vontade de sair e de até ganhar mais do que há dez anos, quando efectivamente era possível viver sozinha.
Em 2011, não era uma criança; lembra-se da crise, “do desemprego, de as pessoas não saberem para onde se virar”. Agora, acredita, mantém-se “o risco de as gerações mais novas continuarem a viver na precariedade” — e, em muitas áreas, “já estamos dentro de um círculo de alguma precariedade”, onde o trabalho é desvalorizado. “Isto tem de parar. O nosso trabalho tem valor, as empresas e as entidades têm de dar mais valor ao trabalhador. Sem ele, nada funciona”, atira.
Preocupa-a também, apesar da existência de quotas, “a falta de oportunidade que as pessoas com deficiência enfrentam no mercado de trabalho”, seja a dificuldade em entrar, a discriminação quando já lá estão, a impossibilidade de progredir na carreira ou a limitação a tarefas menores. E se tem visto “bastante evolução” nos últimos anos, também defende que há muito caminho por fazer e que é preciso que “as pessoas com deficiência estejam em todo o lado, não apenas em acções pontuais”. E é pela inclusão e acessibilidade que se bate, diariamente, no Instagram, onde concilia o trabalho de nutricionista e de activista.
Pagar para trabalhar?
A preocupação imediata de Isabel Vanderlei é acabar a licenciatura em Cultura e Comunicação. Devia ter terminado este ano, mas a covid-19 e o trabalho a tempo inteiro num call center trocaram-lhe as voltas. Apesar de gostar do que faz, tem-se sentido frustrada devido à “estagnação”. “Gostava de ter uma progressão na carreira. E não estou satisfeita com o meu salário...”, desabafa.
Quando falou com o P3, em Fevereiro último, contou como teve de procurar um trabalho que a ajudasse a pagar o T1 “apertado” e as propinas, depois de os pais terem entrado em regime de layoff. Actualmente, está à procura de uma nova casa, mas não está fácil. O salário não chega para pagar estudos, renda e “ter um estilo de vida minimamente confortável”. “Não tenho possibilidade de ter sequer um T0 em Lisboa”, indigna-se.
Antes da pandemia, os rendimentos dos pais eram “suficientemente altos” para lhe garantirem um quarto e educação superior. Agora, a opção é trabalhar em Lisboa e pagar o quarto, ou regressar a Lagos, para junto dos pais. Mudanças que fizeram a sua saúde mental piorar, aguçaram a ansiedade e a depressão e degradaram as suas relações interpessoais.
A retaguarda familiar é determinante para uma geração que não ganha o suficiente para pagar rendas “astronómicas”. Isabel Martins da Silva, de 25 anos, relembra a situação de uma prima que conseguiu emprego na área que procurava em Lisboa: “Se não tivesse as possibilidades que tem, era completamente impossível mudar-se e tinha de se limitar às ofertas que existiam cá no Norte”, diz. Faz lembrar o que os Deolinda cantavam em 2011 e em jeito de manifesto: “Que mundo tão parvo, onde para ser escravo é preciso estudar.” Agora também é preciso pagar?
Isabel considera que a perspectiva de hoje é melhor “do que há dez anos”, mas, ainda assim, vê os colegas do curso de Direito, os que seguem “a carreira tradicional da advocacia”, a ter “uns primeiros dez anos em que são praticamente explorados”. No seu caso, associou o activismo ao empreendedorismo, co-fundou a Meeru, uma associação que presta apoio a migrantes em Portugal, e consegue, enquanto directora de comunidade, auferir um salário digno, como pretende que todos os que trabalham na associação consigam. Mas, assume, se quisesse sair da casa dos pais, a sua vida teria de mudar “radicalmente”.
O que a inquieta é, sobretudo, “a falta de coesão comunitária”. “Acredito que tudo o que é mobilidade humana, migrações, acolhimento e integração tem de estar no topo da agenda. O que aconteceu no Afeganistão lembrou-nos que temos de estar preparados para acolher e que não pode ser apenas em situações de emergência, mas com uma perspectiva de futuro”, afiança.
Com o aumento do número de migrantes — segundo dados do SEF, em 2011 foram concedidos 27 estatutos de refugiados, em 2020 foram 77, uma quebra em relação aos anos anteriores, quando foram concedidos 183 (2019), 286 (2018) e 119 (2017) —, Isabel acredita que tem crescido também, no geral e principalmente na sua faixa etária, a disponibilidade para acolher pessoas. “Tenho muito mais discussões sobre o tema com pessoas da geração dos meus pais do que da minha”, diz.
Muitos direitos conquistados e outros tantos por reivindicar
O dia-a-dia de Gil é influenciado pela “falta de apoio médico especializado a pessoas ‘trans’ em Portugal”. Em 2011, Cavaco Silva promulgou — depois de ter vetado — o diploma que simplificava o processo de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil. Pequenas vitórias numa luta hercúlea que ainda tem muito que andar: “A grande parte da obra ainda não está feita. A exclusão que as pessoas ‘trans’ sentem no acesso ao trabalho, a violência a que somos expostos na rua; a impossibilidade de recorrer às forças de segurança, pois são elas muitas vezes as entidades que exercem a violência; médicos e profissionais de saúde que não estão treinados para auxiliar as nossas transições e saúde.” Por isso, celebrar a conquista de 2011 é importante, mas “representa o mínimo” do tanto que é preciso para “o direito consagrado à não-discriminação”.
Mas não só com inquietações vive um jovem em 2021. Nos últimos dez anos, conquistaram-se direitos e reafirmaram-se conquistas. “E muitas delas vêm da força dos jovens”, lembra Gil. “Devemos congratular-nos de projectos culturais verdadeiramente inovadores, de sermos uma geração extremamente activa em termos políticos, de termos conseguido trazer as reivindicações climáticas para a frente de todas as agendas políticas”, continua. De, à semelhança do que aconteceu há dez anos, os jovens terem enchido as ruas por uma causa.
“Temos uma voz”, sublinha Catarina. “O mundo digital permite que ponhamos um vídeo na Internet e, se dissermos algo com consciência, podemos atingir o mundo inteiro.” E é neste mundo que são fornecidas “inúmeras possibilidades de evoluir, de nos desconstruirmos, de nos educarmos” e de amplificar vozes.
Daqui a dez anos, quando o P3 celebrar 20, o que espera Gil? “Que já tenhamos uma economia descarbonizada, que as pessoas tenham direito à carreira, que haja residências estudantis para toda a gente, que não haja propina, que tenhamos conseguido implementar medidas de não-abandono do interior, que tenhamos uma linha ferroviária que não seja igual à do século XX.” Que as causas de hoje — climática, feminista, anti-racista, pelos refugiados, pela inclusão — não estagnem. Afinal, como escreve Andreia Galvão no mural do P3, ser jovem é, acima de tudo, ser “inconformado”.
Mas, por muito “entusiasmante” que seja, “não deixa de ser difícil por todos os obstáculos” já desabafados nesta ode (pouco laudativa, convenhamos) à juventude. O resumo de Gil: “Ser jovem em 2021 é uma luta pela nossa vida futura, pelo direito a termos uma vida que nos concretiza. Acho que é ‘bué’ isso que as pessoas andam a tentar fazer. Andamos todos a tentar viver.” O de Andreia: “É ter vivido e esperar viver um conjunto de crises durante a nossa juventude e saber que é possível que o mundo seja diferente, fazer para que seja. É acreditar na mudança.” Seja 2021 ou em 2081 — quando este site já não for tão jovem assim. Pelo menos (e, prometemos, unicamente) na certidão de nascimento.