As olheiras de Centeno e as lutas contra a “numerologia” mantêm-se

Parte do mundo de Centeno que ainda não pulou nem avançou: imposto sucessório, defesa de um processo conciliatório de cessação do contrato de trabalho, descida da TSU para os trabalhadores com salários até 600 euros.

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Mário Centeno volta ao Parlamento nesta quarta-feira lm miguel manso

Às vezes parece um remake. Assim que chegou à Assembleia da República na última quarta-feira para ser ouvido sobre o Orçamento do Estado, o ministro das Finanças elencou os dados que ilustram a perspectiva do executivo sobre a realidade: “o défice reduz-se em 2016”, a “dívida mantém a trajectória de descida” e a “carga fiscal baixa”. Conclusão de Mário Centeno: "Números que continuam a não agradar à oposição, mas não há volta a dar-lhes.”

Parece um remake: Centeno, que continua a acusar a oposição de lançar uma "nuvem de fumo" sobre o Orçamento, já se queixava, antes de ser o responsável pela pasta das Finanças, da “numerologia”. Numa entrevista dada a 24 de Setembro de 2015, ao Oje, dizia já, sobre a campanha eleitoral e depois de ter apresentado o cenário macroeconómico do PS, que se inventavam muitos números: “A numerologia tem sido uma técnica que é uma boa parte do que a campanha tem apresentado. E é uma infelicidade, porque é sempre com os números dos outros. E as contas que nós apresentámos não tiveram nenhuma contraparte em nenhum dos outros partidos concorrentes, em particular na coligação.”

O professor do ISEG, que o agora primeiro-ministro António Costa foi buscar ao Banco de Portugal, dizia mais: “A estratégia que tem sido seguida é a de lançar números para a discussão sobre as nossas medidas que nunca até hoje corresponderam à realidade.”

A estratégia parece continuar a ser a mesma dos dois lados, com a diferença que trocaram de lugares. Agora está o PS a governar e a direita na oposição. Um Governo possível graças a sucessivas negociações – primeiro para os acordos à esquerda que suportam o executivo e, depois, para os orçamentos.

As olheiras de Mário Centeno têm sido o espelho dessas negociações que começaram logo após o resultado das últimas eleições legislativas e não pararam até hoje. A imprensa já se referia a elas, em tom de brincadeira, quando decorreram as negociações que resultaram nos acordos com PCP, Bloco de Esquerda e PEV, e o cansaço de Centeno voltou a ser notório quando apresentou esta proposta de Orçamento, novamente fruto de longas negociações.

Apesar das críticas de que foi sendo alvo – o PSD, por exemplo, chegou a acusar o Governo de insistir em manter um cenário macroeconómico “irrealista e irresponsável” – Mário Centeno não respondeu só com números às acusações. A 5 de Setembro de 2015, citava Nietzsche ao Expresso, dizendo que a coligação PSD/CDS estava a fazer-se de morta, por não propor medidas nem explicar os números do programa de estabilidade. “Esta ideia de fazer de morto faz-me lembrar uma frase de Friedrich Nietzsche que diz que ‘há homens que já nascem póstumos’. Dá-me esta ideia, bastante nietzschiana, de que a coligação é póstuma, não existe.”

Na quarta-feira, no Parlamento, foi a vez de citar Camões: “A oposição está cativa de uma tabela. Aquela cativa que me tem cativo, porque nela vivo já não quer que viva.” Centeno disse que o PSD queria as tabelas do Orçamento à espera de encontrar verbas retidas que afinal não encontrou. “[Queria as tabelas] e agora vem-me perguntar onde estão os cativos?”. E foi a vez de evocar Camões: “No campo camoniano, com hipérboles e outro tipo de estrutura linguística, não conseguimos perceber onde está a realidade”, mas no Orçamento a informação está lá, ironizou Centeno. “Não há cativos na educação, não há cativos na saúde”, garantiu.

Tudo calendarizado?

Naquela entrevista ao Expresso, em Setembro de 2015, Centeno dizia também que a política do governo anterior tentou controlar o défice externo “através de impostos, reduzindo o rendimento disponível e dizimando a poupança das famílias”. Ora, continuava, “isso não é uma boa maneira de fazer economia, é uma maneira bastante soviética de fazer economia: pôr o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais a controlar o rendimento da nação e arranjar uma lista de consumos permitidos que equilibre os défices”.

O que este executivo fez agora foi aumentar alguns dos impostos sobre o consumo, com o próprio primeiro-ministro a justificar: “Não estou a fazer qualquer moral fiscal, mas dependem da escolha.” Esta tem sido uma das polémicas que continua a marcar o debate em torno dos números de Centeno e os da oposição. O Governo nega que este Orçamento aumente a carga fiscal. O que o executivo tem argumentado é que aumentou alguns impostos indirectos que dependem da escolha do consumidor.

A realidade em que Centeno se movia quando apresentou o cenário macroeconómico do PS não é a mesma. Por um lado, os acordos à esquerda ditaram o fim de algumas medidas defendidas pelo PS; por outro, houve metas que ficaram aquém do estipulado.

O investimento público, por exemplo, está, este ano, aquém do delineado – o que o Governo tem justificado com questões estatísticas e dificuldades de execução dos fundos estruturais. A economia está a crescer menos que o esperado e, apesar da política de devolução de rendimentos sublinhada pelos partidos que apoiam o executivo, também não se pode dizer que a austeridade se tenha eclipsado do OE. Uma das medidas que devia ter avançado era a eliminação da sobretaxa a 1 de Janeiro de 2017, como ditava a lei, e que afinal vai deixar de ser retida, mas de forma faseada.

A 5 de Agosto de 2015, em entrevista ao PÚBLICO, Centeno parecia, porém, mais seguro das contas que tinha feito: “A carga fiscal sobre as empresas, mas principalmente sobre as famílias é elevadíssima. Pensamos que tem de ser reduzida de forma sustentada, sem aventureirismo. E tudo está pensado, calendarizado e quantificado.”

Centeno dizia ainda ter “consciência de que conduzir a política económica do país não é um exercício de jogo informático experimental, mas definir uma linha de rumo e gradualmente permitir que os agentes económicos se ajustem, criando espaço fiscal neste caso, para a realização de investimento e para a contratação de trabalhadores”.

E em que mais mudou o discurso, ou o mundo, de Centeno? Parte desse mundo que não avançou, ou não avançou ainda: é o caso do imposto sucessório, da defesa de um processo conciliatório de cessação do contrato de trabalho, e da descida da TSU para os trabalhadores com salários até 600 euros. Pelo menos, este mundo de Centeno ainda não pulou nem avançou. 

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